Marta Martins Silva lança Livro “Retornados”: “Uso a escrita como arma contra o esquecimento”

A jornalista lançou o livro “Retornados” que relata 21 histórias entre os 600 mil portugueses que foram obrigados a mudar de vida e regressar a Portugal, após a independência das antigas colonias, carregando vários dramas, traumas e estigmas sociais que viveram, os anos setenta, na sua pátria. Neta de retornados, Marta Martins Silva, quis homenageá-los através deste livro. A jornalista já tinha escrito sobre a correspondência trocada pelos antigos combatentes na guerra colonial. “As pessoas que passaram pelo retorno sintam que finalmente são ouvidas é uma das minhas missões deste livro”, que já vai na segunda edição. Brevemente, estará em Setúbal, para apresentar esta obra que assume-se como um importante exercício de preservação da memória coletiva.

Florindo Cardoso

Setúbal Mais – Como surgiu a ideia de escrever este livro?

Marta Martins Silva – O gatilho principal foi emocional. Os meus avós foram retornados e a vivência deles em África e o regresso pós-independência fez parte das conversas em família durante a vida deles. É uma época que não vivi – nasci dez anos depois do 25 de abril – mas que de certa forma faz parte de mim, uma espécie de ‘herança’ que quis honrar e eternizar no papel. Através das 21 histórias, aproximo-me dos meus avós e do tanto que significaram e me inspiraram ao longo do tempo, que tive a sorte de os ter aqui. Por outro lado, este livro veio na sequência dos meus dois anteriores, que resgatavam as memórias dos antigos combatentes da guerra colonial através da correspondência que trocavam, e fazia nesta altura do meu percurso todo o sentido continuar a desbravar a nossa história contemporânea mostrando ‘ao mundo’ os pequenos protagonistas esquecidos do país que fomos e ainda somos.

Setúbal Mais – São relatadas 21 histórias. Como foi esse processo de chegar a estas pessoas e contar a sua história vivida nos anos setenta?

Marta Martins Silva – Haveria muitas mais para contar – e espero vir a fazê-lo – mas aqui estão 21. Comecei por entrevistar familiares que conhecia e que viveram histórias que sempre me tinham impressionado e depois houve também um passa palavra interessante: ‘Olha, Marta, há uma história que te pode interessar’ ou ‘Conheço alguém que esteve em África’ e de umas fui saltando para as outras. Não posso também menorizar o papel das redes sociais neste processo: nos grupos de retornados descobri pessoas a quem muito agradeço terem confiado em mim sem me conhecerem de parte alguma para me abrirem os álbuns de memórias e o coração. Sou uma privilegiada por todos aqueles que confiaram em mim.

Setúbal Mais – Quais as histórias que mais a marcaram e sensibilizaram?

Marta Martins Silva – Não consigo escolher uma história só, porque todas de alguma forma me marcaram. Prefiro escolher momentos de várias histórias que me ficaram e me vão acompanhar para sempre. O António Neves, mutilado da guerra colonial, foi obrigado a entregar a filha bebé a um desconhecido no aeroporto de Luanda para que a levasse aos avós, no Lobito, numa altura em que a capital angolana estava a ferro e fogo; A Filomena que desconfiava que pudesse estar grávida, mas não tinha médico para confirmar porque todos já tinham fugido de Angola por causa da guerra; a chupeta que ela e o marido não conseguem comprar para a filha em Portugal porque custava mais do que o dinheiro que o casal tinha no bolso; A Clara, que pariu o segundo filho debaixo de tiros; o pai do Jorge que às portas da morte numa cama de hospital no Brasil, para onde se mudaram no pós-independência por não se sentirem bem recebidos em Portugal, diz ‘adeus’ ao filho no dialeto africano. O Luís, que anos depois da independência, tem oportunidade de ir trabalhar para Moçambique, de onde tinha sido obrigado a fugir, e revisita as propriedades que o pai deixara. A destruição que encontra e a forma como a descreve arrepiou-me até hoje.

Setúbal Mais – A palavra retornados ainda é carregada de estigma social. Há uma sensação de abandono destas pessoas. Sente isso nos relatos destas histórias?

Marta Martins Silva – Não podia não deixar de ter a palavra “retornados” no título porque foi aquilo que se convencionou chamar-se aos mais de 600 mil portugueses que no pós 25 de abril e posterior independência das colónias foram obrigados a sair de África mas reconheço que é polémico precisamente por causa desse estigma. Primeiro, porque os portugueses que nasceram em África sentem que o nome não lhes serve porque não se regressa a um sítio que não se conhece e que não se sente como seu. Para estas pessoas não houve retorno. E mesmo para os seus pais e avós que nasceram em Portugal, o retorno é sempre um luto da vida que tinham e que não imaginavam que um dia teria um fim, das coisas que foram obrigadas a deixar para trás, de tudo o que perderam. E o retornado torna-se um rótulo – “o retornado que vive às custas do IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais)”, “o retornado que vem para cá roubar o trabalho de quem cá estava”, “o retornado que estava em África a explorar os negros”, era o que ouviam em todo o lado. Uma coisa curiosa: Uma pessoa com quem falei conta que a mãe foi pôr um relógio a arranjar pouco depois do regresso e que quando o foi buscar na etiqueta estava “da retornada” em vez do nome dela. Sim, as pessoas sentiram-se muito abandonadas neste processo – muitas ainda sentem.

Setúbal Mais – Com este livro qual a mensagem que fica para os leitores?

Marta Martins Silva – No outro dia uma pessoa com perto de 70 anos abordou-me para me dizer que depois de ler o meu livro percebeu quão mal tinha tratado os retornados naqueles idos anos setenta quando se deu o grande êxodo de África para Portugal e que só ao ler aqueles relatos que publico percebeu verdadeiramente o drama destas pessoas que foram obrigadas a deixar tudo em África sem culpa nenhuma no processo. Se mais pessoas ao lerem o meu livro se aperceberem da dureza deste momento histórico para quem o viveu na pele, sinto-me realizada por poder ajudar a trazer luz sobre um período ainda tão na sombra. O 25 de abril celebra cinquenta anos e temos mais do que nunca de ser capazes de falar de tudo: mesmo do que não correu tão bem nesta fase pós-revolução. Não para apontar dedos a ninguém – a história tem de ser lida à luz da época – mas para que as pessoas que passaram pelo retorno sintam que finalmente são ouvidas – que é outra das minhas missões com este livro. O livro já está na segunda edição por isso acho que tenho conseguido fazê-lo, o que me deixa muito feliz.  

Setúbal Mais – Foi marcante para si escrever este livro?

Marta Martins Silva – Foi muito marcante. Sobretudo porque nestas páginas dou voz a pessoas que durante muito tempo não a tiveram e acabaram por viver na sombra as suas memórias: quer a sua vivência em África, quer a mágoa a e a revolta do ‘retorno’ a Portugal quando foram obrigadas a abandonar a única casa que muitos até então tinham conhecido. Eu vou à procura do passado para o tornar presente, acho que é esta a melhor definição. E uso a escrita como arma contra o esquecimento, tal como pode ser arma de liberdade ou de denúncia. O que fica escrito não se apaga – enquanto houver um livro ou uma cópia de um livro, um documento, um registo… o assunto que trata está vivo pelo menos nas mãos (ou no ecrã) de quem o segura. É urgente registar porque se embarcamos na cultura do esquecimento corremos o risco de perdemos o que nos dá o sentido de humanidade.

“Retornados”

Livro conta histórias reais

Marta Martins Silva lançou recentemente o livro “Retornados”, que dá voz a 21 histórias, relatos impressionantes, que se cruzam com a análise histórica, política e social da época sobre a qual se edificou o Portugal contemporâneo. Nestes testemunhos, cabem dias repletos de amor, dor, luta e desespero – sentimentos que parecem unir a vida no antes e no depois do retorno -, mas também de resiliência e superação.

Com o 25 de Abril, mais de seiscentos mil portugueses abandonaram África – para muitos a única casa que até então tinham conhecido – e chegaram a um Portugal que os ostracizou, perpetuando uma sensação de abandono a quem partiu de mãos vazias.

O livro permite ao leitor recuar no tempo e ficar a conhecer, através de quem lá esteve, um momento fundamental da história de Portugal. Este livro assume-se como um importante exercício de preservação da memória coletiva. Honrando a verdade da História e de todas as histórias que se construíram num período em que muitos foram esquecidos e injustiçados, quase cinquenta anos depois recordam-se vidas que, após o regresso, nunca mais foram as mesmas.

Marta Martins Silva nasceu em Aveiro, em 1984. Licenciou-se em Jornalismo e Ciências da Comunicação, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e trabalha desde 2007 na revista “Domingo”, do “Correio da Manhã”. Fascinada pelas histórias dos outros e pela História do país, escreveu dois livros sobre a correspondência durante a guerra colonial, e estreia-se na “Contraponto” com “Retornados”, uma forma de dar voz a milhares de portugueses que no pós 25 de Abril foram obrigados a começar de novo, uma realidade que nunca lhe foi estranha por ser (orgulhosa) neta de retornados.