Jaime Pinho, um dos autores de “Outro Mundo no Mesmo Lugar – A Cidade das Barracas”: “Este livro foi uma lição de vida para mim”

Jaime Pinho (professor de história), Vanessa Iglésias Amorim (antropóloga e docente da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal), Alberto Lopes (professor de história na Escola Secundária Lima de Freitas) e Lia Antunes (arquiteta que está a realizar um doutoramento sobre os bairros de barracas de Setúbal pós o 25 de abril) são os autores do livro “Outro Mundo no Mesmo Lugar – A Cidade das Barracas”, que foi lançado a 21 de abril, no salão nobre dos Paços do Concelho de Setúbal. Editado pelo Centro de Estudos Bocageanos, com o apoio do município sadino, União de Freguesias de Setúbal, Junta de Freguesia de S. Sebastião e da Associação José Afonso, apresenta 70 fotografias inéditas obtidas em 22 bairros de barracas existentes em Setúbal entre as décadas de 60 e 70. As legendas foram feitas por pessoas que habitaram nessas barracas. Setúbal chegou a ter 2.254 barracas, onde residiam cerca de 11 mil pessoas, na sua maioria operários. O sucesso do livro levou já a pensar-se numa segunda edição.

Setúbal Mais – Como surgiu a ideia de lançar este livro?

Jaime Pinho – Encontrámos no Arquivo Municipal de Setúbal 70 fotografias dos 22 bairros de barracas em Setúbal entre as décadas de 60 e 70, acompanhadas por um relatório-inquérito impressionante, do qual publicamos um pequeno extrato, no livro. A comissão técnica que fez o levantamento das barracas existentes, com grande profissionalismo, com números e fotografias dos 22 bairros de barracas tem uma conclusão que é um soco no estômago: “24,75% da população da cidade vive em barracas miseráveis, desprovidas das mais elementares condições de higiene e de conforto” e “quanto ao número de habitantes, supomos não errar muito se avaliarmos em cerca de 11 mil”. O relatório com 8 páginas diz mais: “mas ocorre perguntar, quem é essa gente que assim vive, em tão deploráveis condições de habitação? Serão ociosos, inválidos, mendigos, ineptos? Reduzida parte, justo é confessá-lo, sim. Mas a maioria, a esmagadora maioria, não. São trabalhadores e suas famílias, operários” e inclusivamente muitas pessoas que trabalhavam na câmara municipal.

Setúbal Mais – Espantosamente estamos a falar de um relatório feito antes da revolução do 25 de abril, em plena ditadura. Como explica isso?

Jaime Pinho – Era um relatório confidencial. Daí a dificuldade em encontrar este relatório. Há 25 anos escrevi o livro “Fartas de Viver na Lama”, sobre a luta dos moradores das barracas a seguir ao 25 de abril, e nessa altura, lembro de andar no sótão dos Paços do Concelho, onde estava o arquivo municipal, com o diretor Joaquim Moreira, e não encontrámos fotografias dos bairros de lata. Passados estes anos, Joaquim Moreira descobriu uma caixa no arquivo municipal com este tesouro, fotografias de todos os bairros de barracas e o relatório feito com grande profissionalismo, embora com algumas tiradas salazaristas, mas com enorme humanismo. São documentos históricos de grande importância, com detalhes impressionantes como a descrição da tipologia das 2.254 barracas existentes, com os números de habitantes por cada bairro, dos compartimentos por barraca, da área de cada compartimento, a quantidade de quartos e o número de habitantes por cada compartimento. Tudo isto é desafiante e não poderia deixar de divulgar a nobreza e dignidade destas 11 mil pessoas e formamos uma equipa de quatro investigadores, encontrámos oito pessoas que viveram nessas barracas como o Eduardo Silva, a quem mostramos as fotografias e fizeram as legendas.

Setúbal Mais – Quando viu estas imagens teve logo a ideia de escrever um livro sobre esta temática?

Jaime Pinho – Sim. Percebi que era possível fazer o livro com uma boa apresentação feita por um excelente designer como Jorge Silva e convidando os investigadores e as pessoas entrevistadas, que são a chave desta obra. As legendas foram ditadas pelos moradores e editámos as frases mais significativas para o leitor ficar com uma ideia do que era a vida das pessoas.

Setúbal Mais – Este livro tem uma mensagem para a sociedade?

Jaime Pinho. Sim. Responde às novas gerações que são iludidas e enganadas por algumas pessoas com a ideia de que no tempo do Salazar é que era bom. Devem saber que os seus pais e avós ou dos seus amigos, e uma quarta parte da população de Setúbal, moraram em barracas. Isso é uma mensagem fundamental.

Setúbal Mais – Como foram encontradas soluções para estas famílias?

Jaime Pinho – Através do processo SAAL– Serviço Ambulatório de Apoio Local. Os moradores dos bairros de barracas de Setúbal e de outras zonas do país, constituiram-se em associações e aconteceu uma coisa extraordinária. O primeiro secretário de Estado da Habitação, pós 25 de abril, o arquiteto Nuno Portas (pai de Paulo Portas) elabora um programa de governo chamado SAAL, que tem uma caraterística única, própria de uma revolução. O Estado apoia este processo com uma equipa de arquitetos como o Siza Vieira, Manuel Salgado e Gonçalo Byrne, assistentes sociais, engenheiros e outros, que vai discutir as ideias com os moradores, no local, para a construção das casas. Aliás, foi Gonçalo Byrne que desenhou o bairro do Casal das Figueiras e Manuel Salgado o do Castelo Velho, que foi o primeiro do país a ser habitado.

Setúbal Mais – Como as pessoas têm reagido ao livro?

Jaime Pinho – Este livro foi uma lição de vida para mim. Inicialmente, hesitei em termos éticos, porque as pessoas iam ver as barracas onde moravam com as suas famílias, mas recebi o maior incentivo porque não têm vergonha desse passado. Quis fazer o livro com a maior dignidade possível e daí convidar um dos maiores designers do país, que trabalhou pro bono, para apresentar esta situação social como uma obra de arte.

Setúbal Mais – Já pensa em segunda edição?

Jaime Pinho – Sim. A curto prazo. Vamos propor ao Centro de Estudos Bocageanos que acelere o processo para uma nova edição, que terá um mapa para identificar onde fica cada bairro porque muitas das pessoas nem acreditam que estas imagens são de Setúbal. Todos trabalhamos pro bono, para que o livro chegue às pessoas com um preço acessível. É uma obra histórica para não apagar a memória do que foi o fascismo em Portugal. Vamos fazer apresentações dos livros nas escolas como a Lima de Freitas e D, João II.

Eduardo Silva, morador do Castelo Velho:

“Não tinha condições nenhumas”

Eduardo Silva morou no bairro do Castelo Velho. Relata que o local estava cheio de lama e não tinha condições nenhumas para habitar. Fez parte da associação de moradores que conseguiu construir as novas habitações para o realojamento das famílias.

Setúbal Mais – Qual é a sua história neste livro?

Eduardo Silva – Morava no bairro do Castelo Velho e estive lá seis a sete anos. Era muita gente, 71 famílias. Não tinha condições nenhumas, cheio de lama e chovia dentro de casa. A grande parte das mulheres trabalhava na indústria conserveira, e homens ligados à pesca, construção civil e indústria. Toda a gente trabalhava, mas não havia casas nem dinheiro para comprar.

Setúbal Mais – Como se resolveu a situação no seu bairro?

Eduardo Silva – Depois do 25 de abril, começamos a organizar através do processo SAAL e a criação da associação de moradores que permitiu avançar com a construção das casas em conjunto com os técnicos e arquitetos. Este modelo estendeu-se a nível do país.

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Livro recorda Setúbal antes do 25 de Abril com 22 bairros de lata

 “Eram os tempos da miséria de não ter casa digna”

O livro “Outro Mundo no Mesmo Lugar – A Cidade das Barracas”, de Alberto Lopes, Jaime Pinho, Lia Antunes e Vanessa Iglésias Amorim, cujas fotos têm legendas feitas a partir de testemunhos das pessoas que viveram naqueles bairros, foi apresentado no dia 21 de abril, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, inserido nas comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril.

Em 112 páginas, a obra partilha, com fotografias inéditas, entrevistas e pesquisa documental, o que era Setúbal antes do 25 de abril de 1974. A seguir à revolução, “os moradores destes bairros de barracas, que cobriam grandes partes da cidade, iniciaram uma luta pelo direito mais básico que o fascismo negava violentamente: o direito à habitação”, afirma Jaime Pinho, na nota de abertura do livro.

A vice-presidente do município sadino, Carla Guerreiro, recordou que esses “eram os tempos da miséria de não ter casa digna, da pobreza de quase não ter o que comer, da desgraça de ser condenado a viver excluído nas margens mais distantes da cidade e da sociedade”, lembrando que em 1970 “mais de 11 mil pessoas” viviam nos 22 bairros da lata, os chamados “bairros da folha de Setúbal” ou “bairros dos índios”. Neles, apesar das carências, “vivia gente digna”, que “lutava diariamente para sobreviver” com “trabalhos mal pagos”, muitos deles na indústria conserveira, e se levantava de madrugada para “acartar com baldes de água para encher os precários depósitos de tão precárias casas de lata e madeira”.

Aquelas 11 mil pessoas, “um quarto da população” de Setúbal, viviam “em condições de salubridade absolutamente inaceitáveis, sem água, sem instalações sanitárias, sem luz, sem nada mais que não fossem umas tábuas e umas folhas de lata para as proteger da chuva, do frio e do sol”, disse Carla Guerreiro.

Graças ao 25 de Abril de 1974, “muitos milhares de pessoas, por todo o país, mostraram o que podiam fazer com a sua vontade e as suas mãos” e “os bairros dos índios foram acabando naqueles anos de esperança do pós-25 de Abril, mas novos bairros degradados foram nascendo”, disse ainda a autarca, adiantando que “nem um ano ainda passou” desde que foi erradicado o último aglomerado de barracas de Setúbal, na Quinta da Parvoíce.

A autarca recordou que esse bairro “nasceu já no século XXI, fruto de circunstâncias que em nada podem ser relacionadas com o passado ditatorial”, mas sim da “incapacidade que o Estado teve, nos últimos anos, de encontrar políticas de habitação que permitam encontrar casas a preços acessíveis e criar um mercado de arrendamento a que todos possam aceder”.

Carla Guerreiro lembrou que, para minorar o “problema gravíssimo de falta de habitações”, a câmara municipal está a construir habitação e a reabilitar os fogos municipais arrendados “e que há muito deviam ter sido beneficiados”, num investimento de “quase 200 milhões de euros” com o apoio de verbas do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência.

“Estamos a terminar projetos para lançar concurso para novas 500 habitações da iniciativa municipal para serem colocadas em renda apoiada. O IHRU, em parceria com o município, tem 900 fogos de construção nova para colocar em renda acessível e a ACM tem mais 80 fogos para colocar em renda acessível.  A câmara municipal está a desenvolver um procedimento público para lançar no mercado a construção de 168 novos fogos para renda a custos controlados”, afirmou.

Em representação dos autores, Vanessa Iglésias Amorim, sublinhou que “as fotos mostram a cidade marcada pela pobreza e pela miséria, para não nos esquecermos”, disse, recordando que nos bairros SAAL – Serviço Ambulatório de Apoio Local, criados após a revolução, “as pessoas quiseram ficar no mesmo lugar” onde viviam, “quiseram um outro mundo no mesmo lugar”.

Daniel Pires, do Centro de Estudos Bocageanos, considera o livro como “um documento histórico, social e político de inegável valor”, enquanto a autora do prefácio, Ana Alcântara, afirmou que a obra “revela novas fontes para a história de Setúbal durante o Estado Novo”.