Joana Luísa, ícone de amor eterno

Conheci a senhora D. Joana Luísa Gama, através da sua irmã Eugénia da Conceição Rodrigues. Era eu um jovem que dava os primeiros passos na profissão de professor. Missão que sempre ambicionei e, assim, quando a consegui, jorrou de mim um turbilhão de ideias, como se nada tivesse acontecido na área de estudo que eu passara a integrar, ou como se todos os meus colegas fossem uns incapazes. A irmã da D. Joana, com a sua vasta experiência e enormíssima serenidade envolta numa alegria que brotava de um olhar sorridente, acolhia com uma paciência ativa, as minhas propostas descaradas, nas reuniões de professores da zona de Setúbal. Desde a primeira vez que a visitei, em sua casa, onde conheci a D. Joana Luísa, compreendi que era esse o permanente estado de espírito que pairava nos ambientes em que se encontrava com alguém. Quando assumi funções na Cáritas Diocesana de Setúbal, passei a encontrar-me, mais vezes, com a D. Joana no Centro Distrital da Segurança Social, que, apesar de ter como formação de base o curso de Educadora de Infância uma nobre profissão, na prática, exercia mais tarefas de assistente social, igualmente, uma missão de grande nobreza. Sou testemunha de que foi uma senhora muito considerada e respeitada naquele departamento do Estado. Não por ter sido esposa de um dos poetas lusos mais ilustres, mas pelos seus méritos profissionais e pela sua nobre personalidade.


Era pessoa de poucas falas. Pelo menos na minha relação com ela. Mas, no pouco que dizia, havia muitos substantivos, e escassos adjetivos. Refletia os assuntos com muita clareza e profundidade. Frontal nas suas considerações, por pensar não só o agora, mas sempre numa perspetiva do devir. Nas temáticas religiosas e sociais, sempre me impressionaram as suas ideias vanguardistas. Pessoalmente, entre muitos defeitos que arrasto comigo, um é a dificuldade de escutar. Num diálogo tenho de me violentar para não tomar todo tempo para mim. A D. Joana Luísa era uma das pessoas que me deliciava escutar, sem ter a necessidade de me fazer ouvir. Enternecia-me assistir ao diálogo discordante entre as duas irmãs. Uma discordância firme, mas vincada de muita delicadeza.


Nunca falámos de Sebastião da Gama. Apesar de ele, Florbela Espanca, Luís de Camões e Fernando Pessoa serem dos meus poetas preferidos – mais tarde vim a descobrir outros – nunca tive a ousadia de lhe falar da sua relação amorosa com o poeta que muito admirava e cujo modelo tinha para a profissão que abraçara. Vontade tive, muitas vezes, mas sentia-me imaturo demais para entrar num sacrário que, para lá chegar, era necessário já ter percorrido um caminho juncado de afetos tão sublimes que até quase tocavam o divino. Só assim, talvez tivesse preparado para compreender bem o que me viesse a ser contado pela senhora Joana Luísa no seu relacionamento ultra afetuoso com o poeta que melhor o soube elevar até aonde podem chegar as criaturas consideradas patrimónios da humanidade, mesmo que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) ainda o não tivesse reconhecido. É que o grito de alma de um poeta, vertido num poema, também se torna património, não mundial, mas, seguramente, imortal. Refiro-me, como é óbvio, à nossa querida Serra da Arrábida. Li todos os livros de poemas e o Diário de Sebastião da Gama. Se o tivesse conhecido e relacionado com ele teria a oportunidade de o conhecer melhor, mas pelos seus escritos dá para perceber como era uma pessoa com uma profunda espiritualidade, que não se deve confundir com religiosidade; com uma sensibilidade entranhada até ao mais íntimo de si mesmo; com uma mística apoiada nas mais pequenas às mais inatingíveis belezas da “Serra Mãe”; com uma criatividade explosiva, capaz de fazer de um pequeno gesto uma grande expressão amorosa, ou de um novo método pedagógico uma reconquista para a aprendizagem. Conheci e convivi, embora, por pouco tempo, com a senhora Joana Luísa Gama, e não sei quem foi que influenciou a vida um do outro. O poeta a dela, ou vice-versa. Sebastião da Gama reconhece isso, no seu lindo poema intitulado “Madrigal”: A minha história é simples./A tua, meu Amor,/é bem mais simples ainda:/“Era uma vez uma flor./Nasceu à beira de um Poeta…”/Vês como é simples e linda?/ (O resto conto depois;/mas tão a sós, tão de manso/que só escutemos os dois).


Quando o amor impera é impossível conseguir-se saber quem conquista quem, pois somente se sente o AMOR!


Eugénio Fonseca, Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado