Costumo dizer que me foi concedida uma Graça que, como todas as Graças, não sei explicar: ser, tanto quanto é possível sê-lo, o guardião de um poeta.
No entanto, é bom recordar que isso apenas é possível porque antes de mim houve alguém que zelou pela memória do poeta e a manteve viva até hoje.
No meu caso, o rosto da perseverante luta contra o esquecimento do meu poeta, Sebastião da Gama, é – e sê-lo-á sempre – Joana Luísa da Gama, a mulher que celebrou 100 anos a 28 de Fevereiro de 2023.
É, por isso, lícito (senão obrigatório) perguntar: mas quem foi Joana Luísa?
À pergunta responde ainda um silêncio. Sabemos pouco. E assim é porque Joana Luísa escolheu a sombra, não chamando a si qualquer protagonismo nem atenção, resguardando-se dos olhares que queria focados no seu Bastião, o homem que amou toda a vida.
Quando decidimos celebrar conjuntamente o centenário de Joana Luísa e de Sebastião da Gama fizemo-lo por nos ser evidente não existir um sem o outro. É certo que Sebastião da Gama começou a escrever muito antes de 1944, ano em que se “oficializou” o namoro entre ambos. Mas foi a ela que chamou Companheira e “aquela que tudo justificou” (e atente-se que a sua “Serra-Mãe”, apenas foi publicado em 1945).
Verdade seja dita, após a morte de Sebastião da Gama, Joana Luísa tudo fez para continuar a justificar os títulos que o marido lhe atribuiu.
Joana Luísa d’ Oliveira Rodrigues da Gama, de seu nome completo, nasceu na Rua José Augusto Coelho, em Azeitão, a 28 de Fevereiro de 1923 e morreu a 15 de Abril de 2014. Nascida e criada conforme os preceitos da época – fez a quarta classe, porque mais que isso era vedado às meninas que se queriam perto dos pais até ao casamento – a sua teimosia permitiu-lhe ter um emprego e, mais tarde, salvar os papéis de Sebastião da Gama, os únicos papéis que chegaram até nós.
Viveu, garantidamente, 91 anos, mais os 9 em que permanece na nossa memória.
Seguindo o velho ensinamento dos historiadores, poderíamos facilmente fraccionar a sua vida em períodos distintos: a infância e adolescência (de 1923 a 1944), o namoro (de 1944 a 1951), o casamento (de Maio de 1951 a Fevereiro de 1952) e a viuvez (de 1952 a 2014). De 2014 em diante podemos considerar o início de um novo período: o legado, período em que nos encontramos e que queremos eterno.
Verifico, no entanto, que há quem pense que a vida de Joana Luísa podia simplesmente dividir-se em dois momentos: antes e depois de Sebastião da Gama; ou melhor, antes e depois da morte de Sebastião da Gama.
Tenho grandes dúvidas em aceitar estas divisões, por dois motivos: primeiro porque não duvido da força transformadora do Amor (o Sebastião da Gama demonstra-o diversas vezes e melhor que ninguém) e no seu efeito de alargamento dos horizontes humanos quando, um casal destinado a estar junto, se encontra (pelo que é evidente que existe um antes e um depois de Sebastião da Gama); em segundo lugar, porque estando certo da mudança que ocorre na vida da jovem Joana Luísa com a morte do seu amado Sebastião – mudança facilmente testemunhada pela transformação do rosto sorridente e iluminado em fechado e distante; pelo grito de dor que a leva a confessar “eu nem sabia como é que vivia. Não vivia de maneira nenhuma…”, tendo chegado a considerar tomar a vida religiosa – cada vez mais constato que aquilo que há de extraordinário nesta história de amor é um Sonho que só não se perdeu, porque se transformou; porque Joana Luísa o transformou, numa prova de grande resiliência, tomando-o para si e decidindo que o seu amado Sebastião da Gama continuaria a viver, não só em si, mas através de si e do seu testemunho.
Se durante a vida de Sebastião, Joana Luísa foi musa e foi companheira, tido sido para si que Sebastião da Gama escreveu mais de 727 cartas e um sem número de poemas – poemas esses que ela ajudava a seleccionar quando o poeta queria publicar um livro, – foi também namorada e mulher e, por certo, alimentou uma breve esperança (ou pelo menos idealizou) de uma vida longa e de realizado amor, apesar da doença fatal do marido.
No entanto, depois da morte de Sebastião da Gama, ela revelou uma profunda fidelidade ao projecto de vida que delinearam. Casar outra vez? Estava fora de questão, porque o Sebastião não a largava. Por outro lado, a vida religiosa não era solução, porque sentia o chamamento e a voz do seu amado. Referir-se-á, em 1993, ao sentimento de missão que a tomou depois da morte de Sebastião da Gama: partilhar a riqueza que Deus lhe confiara, ou seja, como alguém escreveu, partilhar o seu Marido com o Mundo.
Foi por isso que, dando uso à sua teimosia (certamente exacerbada pela dor), contrariou a vontade do pai que a exortava a largar os papéis do marido, após a morte do Sebastião da Gama, regressou a Azeitão, deixando a casa de Estremoz que já não considerava a sua casa e trouxe todos os escritos do Sebastião para os colocar em ordem. Disso resulta o facto já conhecido de ter sido ela quem deu a conhecer a maioria da obra do marido.
A isto acresce a sua forma de estar, com a frequente referência a orações e pedidos que faz ao seu Bastião e aos conselhos que dele obtém quando os contratempos da vida ou dúvidas teimavam em bater à sua porta. O seu discurso flui naturalmente com referências plurais: “eu e o Sebastião…”, tornando-o presente, real, vivo em cada momento.
Em carta de resposta a António Alçada Baptista, datada de 23 de Novembro de 1980, ela mesmo explica: “tudo o que faz parte do espólio do Sebastião me é inteiramente necessário ainda. Tudo me fala muito dele […]. De tudo necessito muito ainda para meu equilíbrio afectivo, pois é nas coisas dele que, em cada momento, revejo e sinto a sua presença”. E em 2000, confirmaria isto mesmo ao Jornal de Azeitão: enquanto fosse viva, não se separaria das coisas do Sebastião.
Compreende-se esta posição: Joana Luísa precisava na terra da presença física do Sebastião. Depois da morte, estava certa que estaria com ele, como estará agora.
Talvez o mais ilustrativo episódio desta forma de estar seja relatado pela própria Joana Luísa, na Introdução ao Volume I das Cartas (o único publicado). Conta Joana Luísa que aos “sessenta e dois anos resolvi: «vou-me aposentar e pôr em ordem todas as cartas do Sebastião, para que, quando eu morrer, possam ser publicadas». Afastava sempre a hipótese de as divulgar eu própria, sentia que fazê-lo era arrancar um pedaço de mim.”
No entanto, acabou por ser aos setenta anos que levou à Editora o Volume I das Cartas: “O que senti é inexplicável. (…) senti em mim um arrependimento. Estive tentada a arrancar-lhe das mãos o original, mas não o fiz. E voltei para casa «desasada»”.
Arrancou, portanto, um pedaço de si. Um pedaço do Sebastião que tinha em si e para si.
Fazendo-o, encarnou bem o poema “O Segredo é Amar”: “Fosse mais bela a vida e mais sincera…/Como eu lhe quero, mesmo assim! /Tanto lhe dei de mim/que já é menos acre do que fora”. E assim cumpriu o Sonho.
Nos seus 100 anos, é tempo de Amar Joana Luísa da Gama – de cada um arrancar um pouco de si, para ela e por ela.
Lourenço de Morais, presidente da Associação Cultural Sebastião da Gama