Sebastião da Gama e um guia turístico

João Reis Ribeiro

Entre 28 e 31 de Maio de 1949, um fim-de-semana e o início da semana seguinte, Sebastião da Gama vestiu a pele de guia turístico para si próprio e visitou as terras da Arrábida num percurso de escrita, de memória e de cruzamentos com sabores e com cultura, atribuindo-lhe o título de “A Região dos Três Castelos”. O manuscrito de 21 páginas daria origem, em Agosto seguinte, a pequeno opúsculo ilustrado com uma dúzia de fotografias, algumas delas com a assinatura do conhecido fotógrafo setubalense Américo Ribeiro (1906-1992), publicado também em francês e em inglês por conta da Transportadora Setubalense (empresa criada por João Cândido Belo em 1925, que, em 1928, transformou em sociedade com dois irmãos).

Sebastião da Gama

Além do roteiro devido a Sebastião da Gama, o opúsculo contém, no início, folha desdobrável com “gráfico do circuito turístico da Região dos Três Castelos” para o leitor ou o visitante acompanharem o trajecto à medida que os quilómetros, as curvas ou o texto avançam, e, no final, página com informações úteis sobre a viagem, tais como o horário e os custos – saída de Cacilhas pelas 08h30 e regresso ao mesmo ponto previsto para as 22h00, sendo o preço do circuito de 60$00 por pessoa, que subirá para 100$00 se incluir almoço na Arrábida e para 116$00 se integrar merenda na Quinta das Torres em Azeitão. As quase catorze horas do itinerário levam o passeante por Santana, Senhora do Cabo, castelo e vila de Sesimbra, Arrábida (Portinho incluído), Setúbal, Palmela e Azeitão (Bacalhoa e Quinta das Torres).

O início do texto não podia ser mais explícito naquilo para que se convida e no que se pede ao viajante/leitor: “Não é aqui nem ali, nomeadamente, é onde quer que começa a ser visto que Portugal começa a ser maravilhoso.” A associação da visão ao encantamento lança o dito visitante num passeio de onde não podem estar arredios os sentidos, primeiras formas de captar o belo que irá ser arquivado pela memória. “Metam-se”, pois, os viageiros “numa confortável camioneta e venham connosco verificar esta verdade.” O convite tem o seu toque de publicitário ao mencionar a comodidade do transporte e o apelo para uma viagem em conjunto (com o pessoal da empresa, mas também com o roteiro escrito) na busca da prova de que a frase de abertura do texto contém uma universal verdade…

O autocarro arranca e passa por vilas, zonas industriais e comerciais e campo, ponto em que a Natureza converge para saudar os excursionistas – “ulmos e acácias vieram até à beirinha da estrada ver-nos passar” – ao mesmo tempo que se vai afirmando pelo seu rejuvenescimento – plantas que crescem, sementeiras que se desenvolvem, pomares prometedores. Em tão paradisíaco e próspero cenário, a alma do grupo revê-se na animação transferida para a forma de transporte – “a camioneta vai contente, porque é ela que mostra tudo isto, porque vão contentes os que espreitam pelas suas janelas.”

E lá surgem Fogueteiro (com “uma novíssima fábrica de têxteis artificiais”), Santana (“burgozinho de camponeses”, com referência a uma “casinha discreta” onde há “bolos deliciosos, dignos de um convento”), Cabo Espichel (onde se chega por uma estrada “orlada de malmequeres brancos”, animada por “uma ou outra carroça, um ou outro burriquito”, para o qual nem falta a onomatopeia “toc toc toc” à maneira junqueiriana, e sítio para visitar a igreja e encher “os olhos de Mar e Abismo”) e Sesimbra (com visita ao castelo e à vila ornamentada, “de um lado, de aiolas e traineiras, do outro de barracas de lona”, e uma saudação ao Senhor das Chagas).

O ponto seguinte é a Arrábida, cujo primeiro sinal chega através da visão e do olfacto – “nos primeiros lanços fica-nos ela em frente, azul e majestosa; pouco a pouco, começam o alecrim, o rosmaninho, a esteva, a anunciá-la na sua voz de perfume.” Já passará do meio-dia quando o grupo por aqui anda, em trânsito por Casais da Serra, El Carmen e a Serra do Risco, “o ponto mais alto da costa de Portugal”, que, vista ao longe, merece uma descrição rica de metáfora e de pintura: “sobe para o Céu na sua escalada titânica”, com o “ar de uma onda que avança impetuosa e subitamente estaca e se esculpe no ar”, apresentando o aspecto de “uma onda de pedra e mato, o fóssil de uma onda”. Deslumbrado, anota o guia: “à maravilha segue a maravilha”, forma de superlativizar a beleza. Segue-se a Mata do Solitário e o Portinho da Arrábida, “uma baía que abraça amorosissimamente o mar estático”, ponto onde será o almoço, ali na Estalagem de Santa Maria, instalada na fortaleza, gerida por Sebastião Leal da Gama Júnior, pai do poeta.

El Carmen

Depois, é a visita à Lapa de Santa Margarida (“uma gruta enorme que o mar enche com a sua voz sagrada”) e a Alportuche, de onde os convivas poderiam apanhar um bote para visitar as praias dos Coelhos e de Galapos, avistando a Pedra da Anicha (cujo nome foi aproveitado por Sebastião da Gama para o pseudónimo Zé d’Anicha, com que assinou colaboração no montijense “Gazeta do Sul”). Seguem os forasteiros para o Convento (onde se “concentra a religiosidade esparsa pela serra”), ponto para o narrador evocar o seu predecessor-mor no elogio da Arrábida, Frei Agostinho da Cruz, que disse a Nossa Senhora viver “nesta Serra do Céu, vossa vizinha” e que calcorreou o monte rasgando “o hábito na aspereza dos carrasqueiros, na ânsia de subir tão alto que visse o Céu de mais perto”.

Prosseguem os leitores pela estrada que corta a serra pelo alto, parando nos mirantes, contemplativos, e ladeando o Outão, passando pela Comenda, praia de Albarquel e chegando a Setúbal (com visita ao forte de S. Filipe, às Igreja de Jesus e de S. Julião – pelos seus registos manuelinos -, à praça de Bocage, à avenida Luísa Todi e, para haver “uma ideia do movimento piscatório da cidade”, à doca das Fontainhas, e, pelo seu “panorama lindíssimo”, ao miradouro de S. Sebastião). Não partisse o visitante sem satisfazer gostos e outros sentidos, o conselho do guia vai no sentido de obter uma caixa de doce de laranja “para tornar a viagem mais agradável ainda”.

Forte de São Filipe

Palmela e o seu castelo, com uma “paisagem deslumbrante e sem fim”, estão a seguir, com uma vila “aninhada entre vinhas e confiante na protecção do seu castelo” e com a “música estranha dos moinhos”, numa evocação do D. Quixote… Por Quinta do Anjo e Cabanas chegam os passeantes a Azeitão cerca das 19h30, com a promessa do moscatel e de “um queijo de ovelha divino”. Pontos de paragem são o palácio da Bacalhoa (justificado pela sua história e azulejaria), a Quinta das Torres (“retiro romântico onde apetece esquecer o tempo”, com publicidade para o ambiente da casa de chá, apresentada como poética e encantadora), as igrejas de S. Simão e de S. Lourenço.

Castelo Palmela

De acordo com o roteiro, são 21h00 quando a camioneta sai de Azeitão e passa por Brejos, Paio Pires, Torre da Marinha e Corroios, chegando a Cacilhas, “ponto final na viagem”, às 22h00. Não pode, contudo, o guia da excursão parar a sua descrição por aqui e, numa tentativa de prolongar a sensação do passeio, olha para Lisboa, “que parece ter sido invadida pelos pirilampos” e “não tem ciúmes das terras bonitas que fomos ver”, pois “para Lisboa há sempre um lugarzinho no coração e um galanteio à flor dos lábios…”

É de satisfação e de prazer a sensação no final da viagem, graças ao que os companheiros interiorizaram relativamente ao que degustaram da paisagem e ao que visitaram pela memória e pelo caminho da beleza. Sebastião da Gama, que os guiou e acompanhou pela escrita, subscreveria, por certo, aqueles versos de Manuel de Arriaga, compostos quando desceu do Pico, em 1887: “Se Deus nos permitiu que a alma em si contenha/As formas ideais do belo e da harmonia,/Porque se há-de prender o homem na atonia/Duma vida vulgar, tão mísera e tacanha?!” Com efeito, as belezas que Sebastião da Gama regista existem também porque o olhar as saber perscrutar, porque viajar é procurar o belo que há no mundo.

“A Região dos Três Castelos” continua um texto actual, apesar das alterações da configuração da paisagem no que diz respeito à intervenção humana entretanto levada a cabo. Embora tenha sido escrito com intenção de promover o turismo na região por uma empresa da região, mantém a frescura do olhar poético de Sebastião da Gama e é uma referência literária sobre a região da Arrábida. Em 1969, duas décadas depois de ter sido escrito e publicado, foi integrado na obra “O Segredo é Amar”, organizada por Matilde Rosa Araújo (1921-2010), que ali integrou textos diversos em prosa assinados pelo poeta azeitonense; em 1980, David Mourão-Ferreira (1927-1996) reproduziu excertos deste guia no segundo volume da antologia “Portugal – A Terra e o Homem” (editado pela Fundação Calouste Gulbenkian); no final da década de 1990, em data não registada e sem título, a Câmara Municipal de Setúbal, editou o texto em opúsculo autónomo, reproduzindo as fotografias da edição original. Uma sugestão de passeio literário ao alcance do leitor…