Sebastião da Gama e o fascínio de Paris (III)

Nova incursão no Louvre, Sebastião da Gama fá-la-á na quarta-feira, 11 de Agosto, com uma promessa: “irei lá ainda, se tiver tempo, para ver novamente a pintura que mais me agradou”. Apesar do dia fatigante, no registo dessa data, planeia ainda o resto da viagem – acabar de ver Paris, visitar Versailles e Chartres. Desta última cidade chamava-o a catedral, talvez “a mais bela de França”, país cuja “gente parece que nasceu para fazer catedrais”, explica a Joana Luísa.

A jornada seguinte, em que “choveu a potes”, foi ocupada com uma ida a Les Halles, espaço que o deixou impressionado com a riqueza e variedade dos legumes e dos frutos à venda. Visitou a igreja da Madeleine (onde regressará no dia 15 para ouvir um concerto de órgão), os Museus dos Impressionistas (Jeu de Paume) e da Pintura Francesa e a exposição consagrada a Jacques-Louis David, havendo ainda tempo para um giro em busca de “livros, livros, livros”, o que o fará repetir a ideia das ofertas para os conhecidos: “levo quase nenhumas lembranças para os outros, porque a pessoas a quem não posso dar livros é difícil dar outra coisa sem me roubar a mim uns tantos livros.”

Da sexta-feira, há pouco registo quanto a visitas, mas Sebastião relata que foi ver um filme em que acontecia “um fuzilamento de empregados dos comboios”. Sem identificar o título da obra, bem poderá ter sido a fita “La bataille du rail”, realizada em 1946 por René Clément, que evoca o papel dos ferroviários na Resistência francesa. Ficou impressionado com algumas cenas do filme e a questão das sonoridades levou-o ao seguinte desabafo: “Durante, antes e depois de o dito fuzilamento, os comboios rangiam e apitavam e era a lamentação musical mais comovente, mais aguda e mais bela que eu jamais ouvi.”

Em 14 de Agosto, a visita foi ao Sacré Cœur (“bastante imponente, está panoramicamente para Paris como para Lisboa o Castelo de S. Jorge”, explicará a Joana Luísa), Montmartre (“um Paris diferente”), Sainte Chapelle (“uma jóia de arquitectura”), casa de Victor Hugo, Biblioteca Nacional, Museu Carnavalet, Saint Sulpice e Saint Germain des Prés.

Mesmo longe, em passeio e visitas, Sebastião da Gama sentia a presença da Arrábida. Havia as saudades da família, é certo, havia as saudades da namorada (muitas vezes referidas) e havia também uma permanente saudade da Arrábida. Durante uma parte do tempo que a visita durou, Joana Luísa estava na Arrábida, a passar uns dias na praia. Provavelmente terá dito ao noivo que o tempo estava ventoso, porque, em Paris, Sebastião escrevia em 16: “Só te não perdoo dizeres mal do Vento… Sem ele, como teria eu escrito os melhores dos meus versos? Engolfa-te nele, abisma-te nele, ama-o e verás. Enrodilha-te no Vento e verás. Morde o Vento e verás. Ah, não tê-lo eu aqui à mão, ao viril Vento da Arrábida!…” Neste dia, o passeio acentuou a saudade ao visitar Le Planeau, “um aglomerado de umas doze casinhas de colmo”, em que cada casa se lhe afigurava como “um verdadeiro ninho”, espaço onde desejaria estar com a noiva, “um sítio onde eu gostaria (e gostarei, se Deus quiser) de vir contigo.” O encanto sentido naquele espaço serviu-lhe para idealizar um encontro com a namorada, confidenciando: “Que pena não ires pelo meu braço! Não há muitos minutos que eu disse alto: Meu Amor. OUVISTE?”

É também de 16 de Agosto uma carta que Sebastião envia para o primo azeitonense Artur Cardoso, não escondendo a protecção da Natureza como uma paixão comum aos dois amigos: “Que coisas maravilhosas te obrigariam a ficar aqui! Só o que neste país e nesta cidade há de árvores é suficiente para apaixonar um portuguesinho valente. Na nossa terra destroem-nas; aqui, cultivam-nas, amam-nas como a manjerico.”

Data de 17 de Agosto o relato para Joana Luísa de mais uma descoberta em Paris, provavelmente ocorrida no fim de semana: “E pensar eu que por um triz não ia ver as Folies Bergère! Tu não podes imaginar que deslumbramento de espectáculo é ele em certos momentos.” Sebastião foi, contudo, um assistente crítico – não achou interesse nas piadas políticas, considerou haver falta de unidade entre os vários quadros, achando mesmo que “mais de metade dos quadros são aborrecidos e, a meus olhos, estúpidos.” No entanto, alguns quadros impressionaram-no fortemente, chegando mesmo a descrevê-los com alguma minúcia. A apreciação global do espectáculo passou também pelos aspectos positivos – “Tinha coisas encantadoras, tão cheias de arte, um cenário e uma mise-en-scène tão ricos e tão belos, um guarda-roupa tão maravilhoso que eu saí de lá encantado.”

Há ainda uma referência breve à ópera “As Valquírias”, que foi ver. Porém, apesar de reconhecer ter tido bons intérpretes e uma boa mise-en-scène, a apreciação incide sobre a grandiosidade do edifício, a Ópera – “é uma maravilha. O foyer é todo em talha dourada, a sala é circular e também em talha muito bonita e, quando se sai, há uma espécie de varanda que faz um grande quadrado sobre um patamar para onde dão duas escadas de mármore.”

Nessa terça-feira, Sebastião foi, a conselho de André Figueras, a Saint Germain-en-Laye, tendo-se deixado impressionar pelo castelo e pelo panorama ao longo do trajecto. A dado passo, caminhou junto do Sena durante quatro quilómetros, aproveitando um sentir algo idílico que o aproximou de outro rio, no Norte de Portugal, que ele bem conhecia – “Que encanto, meu Amor! É o Lima – a mesma doçura, o mesmo carinho verde debruçado sobre ele. Por defeito único, os carros a fazerem barulho – lá no Lima o rio foge-lhes.”

O final do dia 17 passou-o Sebastião noutras descobertas – “Gastei bem 560 francos numa volta que me deixou feliz: todo o Bairro Latino foi meu campo de batalha, vi a Universidade e entrei em mil livrarias – daí deriva todo o meu mal.”

No dia seguinte, 18, quarta-feira, um postal com os alfarrabistas do cais do Sena é enviado a Joana Luísa, anotando: “Esta fotografia é tão bonita e é tão própria para eu te mandar, que resolvi dizer-te adeus nela. Paris acaba amanhã – Paris visto, que o Paris lembrado não pode acabar.” Mas é também desse dia uma longa carta em que Sebastião fala das saudades e da sua paixão por Joana – “abençoada seja a doce França, que tão mais belo e tão mais alto fez o nosso Amor. Abençoada seja esta saudade (…)! Há lá coisa melhor do que, pela saudade, pesar este grande Amor que te devo, que talvez te mereça, que é a graça Maior que Deus me deu?”

Este último dia em Paris não podia passar sem mais uma história em torno de livros. Sob o título “Coisas que me acontecem”, Sebastião registou o episódio: “Saio depois de jantar, a dar uma volta breve. Paro em frente de uma livraria, onde há livros para crianças. Gentilmente, a Senhora abre-me a porta e entro. Converso. Vejo livros. Converso. Vejo livros. Compro dez livros a 5 frcs. e 2 a 10. Converso. Saio. Tinha-se passado uma hora. Na montra em que não me demorara, vejo agora um livro de arte que muito me interessa. 1200 frs. Podia gastá-los mas não quero; tenho sabido dizer-me mil vezes que não. Pergunto: ‘Se eu lhe mandar pedir de Portugal, pode mandar-mo?’ Que sim senhor. Que até lho podia pagar em conservas. E de repente: ‘Olhe, leve-o. E mande-me conservas até 1200 frs.’ Isto é para ficar na história.”

Na quinta-feira, Sebastião deixava Paris rumo a Chartres. Em nota de viagem, registou: “Chartres é maravilhoso. Deve ser a catedral mais antiga de todas que vi e impressiona pela beleza das linhas e pelo encantador dos vitrais e das esculturas. A cidade é a mais bonita das que vi: um ar de aldeia grande, acolhedor e limpo. Casas velhíssimas. Numa janela, adorável, meia dúzia de flores a escreverem um poema.” Deixa-se ainda impressionar pelo corredor da cripta: “tem mais de vinte metros, tem aí três de largura e é todo ele, como a capela, iluminado por pequenas lâmpadas que dão uma luz religiosa. É impressionante olhar quer do fundo do corredor, quer da capela. Aquele corredor é uma oração.”

Desta viagem não houve mais registos escritos, sabendo-se ainda que teria intenção de passar por San Sébastian. Certo é que, em 21 de Agosto, sábado, Sebastião da Gama entrava pela fronteira de Vilar Formoso. Brevemente estaria bem próximo de quem amava para contar de viva voz as emoções que já deixara passar nas cartas. Três dias depois, escrevia carta ao seu amigo Eurico Lisboa, revelando: “Cá estou, com os olhos grávidos de Beleza.” Será talvez esta afirmação o melhor resumo daquilo que Sebastião procurou nesta viagem…

João Reis Ribeiro