A viagem a França de Sebastião da Gama: A busca da religiosidade, da estética e de si

Em 31 de Julho de 1948, o jovem Sebastião da Gama, com 24 anos, atravessava a fronteira luso-espanhola a caminho de Paris. Sobre o passaporte, em que constava a profissão de escritor, eram apostos nesse dia os carimbos dos postos fronteiriços de Vilar Formoso e de Fuentes de Oñoro e, no dia seguinte, o de Irún. Já em 2 de Agosto, recebia o selo de Hendaye. Era uma viagem que se iria prolongar até 21 de Agosto, um sábado, data em que o passaporte volta a receber o registo do posto de Vilar Formoso, agora para assinalar o regresso.


Esta viagem de Sebastião da Gama, a única que fez ao estrangeiro, andava já a ser preparada, pelo menos desde o primeiro trimestre do ano – em 20 de Março, André Figueras (1924-2002) escrevia de Paris ao amigo Sebastião a dizer-lhe que o custo do encontro seria o da viagem, já que a sua casa estava disponível para receber o poeta de Azeitão durante a estadia nas margens do Sena.


Figueras, homem ligado à Resistência francesa desde os 17 anos, interventivo, era também poeta e terá sido esta faceta que cimentou a amizade entre os dois. Na carta de Março, Figueras dizia: “Foi delicado da sua parte traduzir-me os seus poemas e estou-lhe reconhecido por isso, porque eles são muito belos, sensíveis e inteligentes, como deve ser, parece-me, a verdadeira poesia.” Havia, portanto, troca de poemas entre os dois amigos e uma ligação literária forte.


Em Dezembro do ano anterior, Sebastião compusera um poema em cinco quadras de versos decassilábicos, “Ô couronnés de sang et d’amertume”, dedicado a André Figueras e enviara-lho. Nesse texto, inserido na obra póstuma “Estevas” (2004), Sebastião da Gama glorificava os jovens resistentes franceses, que colocava sob o patrocínio de Joana d’Arc, para eles implorando logo no início: “Ô jeunes gens du doux pays de France, / votre effort a fleuri. Soleil de France, / viens bénir ceux qui t’ont ressuscité.” Remetido o poema para o seu destinatário, acabou por ter a sua primeira publicação em Paris, já que Figueras publicou em 1948 o livro de poemas “La France et le Soleil”, prefaciado por Fernand Gregh, e aí inseriu o poema que Sebastião da Gama lhe oferecera. Contudo, Figueras foi ainda além desse gesto, contemplando o poeta azeitonense com um poema de oito quadras intitulado “Réponse à Sébastiao da Gama” (escrito sob a impressão da leitura de “Cabo da boa Esperança”) também publicado nesse livro, trazendo para a última estrofe a paixão que os dois amigos nutriam pela França: “Nous t’aimons tous les deux, ô mon pays de France, / Lui de chez Camoëns et moi de chez Hugo; / Car malgré le langage et malgré la distance, / Comment ne pas t’aimer avec des cœurs égaux?”


Em Outubro de 1948, Sebastião da Gama iniciou a escrita de umas “Notas de Viagem” sobre este seu passeio a França, sem que tivesse passado de um primeiro capítulo intitulado “A doce França” (inserido na obra “O Segredo é Amar”, de publicação póstuma). É elucidativa quanto às intenções da viagem a forma como o texto se inicia: “A França era muita coisa, mas era principalmente a terra de Baudelaire e de Verlaine. Acenava-me de lá, também, a mão amiga do André Figueras, o poeta violento do ‘Chant de notre mort’. Fui. Parti de Lisboa numa manhã antipática, às seis da manhã.” Com efeito, nota-se que a primeira preocupação é de âmbito cultural, através das evocações de dois dos nomes maiores das letras francesas, assim funcionando esta viagem como um complemento à licenciatura que Sebastião da Gama completara nesse ano de 1948 em Filologia Românica; por outro lado, há a referência ao amigo francês Figueras – na biblioteca do poeta azeitonense, constavam vários títulos do amigo, como “Châteaux en azur” (1947), “La France et le soleil” (1948), “Mon cœur parmi son mal” (1949), “Instantanés nerveux” (1950) e “Onze Novembre” (1951), todos autografados, com a particularidade de o último conter já uma dedicatória também dirigida a Joana Luísa, casada com o poeta em Maio de 1951, “À Monsieur et Madame Sebastiao da Gama leur ami AF”.


O relato publicado desta viagem, Sebastião só o fez até à chegada a Bordeús. A partir do momento em que regista a entrada em França, o viajante quase se transfigura num quadro de felicidade: “E então é que foi arregalar os olhos e ficar contente! A estrada é sempre orlada de grandes árvores muito verdes, que são a guarda avançada de matas vastíssimas, lindíssimas. Quase não há um metro de estrada em que não haja uma, duas, mil árvores. E eu, que não sabia que a França era tão bonita e tão verde, ia feliz como um pássaro.”


Com a viagem a decorrer em automóvel, na companhia de amigos, as paragens podiam ser muitas, com o objectivo de muito ver. E o grupo vai visitando St. Jean de Luz, Biarritz, Bayonne, Lac Léon, Mimizan, Bordéus. O prazer da descoberta ia desde as pequenas coisas (o uso generalizado da bicicleta como forma de locomoção – “havia-as pedaladas por velhas setentonas, havia-as pedaladas por freiras”; o gosto de meter conversa com a mulher da taberna, “uma velhota estupenda que vale uma página”) até àquelas que mais intrinsecamente estavam ligadas à forma de ser e à poesia de Sebastião da Gama, como o verde da paisagem ou o fascínio perante as construções religiosas – “as igrejas deram-me chama, deram-me alma, deram-me Deus”.


Bordéus foi, como ficou dito, o último ponto desta narrativa de viagem e poder-nos-emos admirar pelo facto de, perante tão intensa experiência, Sebastião da Gama não ter feito um diário da mesma (ele, que até escreveu um diário da sua profissão). Contudo, é o próprio poeta que se justifica dessa falta quando escreve nesse texto: “É que para viver tudo o que ia vendo, para cada minuto ser uma brasa na minha carne, eu tinha de não ir escrevendo o meu diário; a partir de Nantes, em papéis soltos, ainda escrevi uma ou outra referência muito vaga. Só em Paris, com mais calma e mais tempo, pude pormenorizar – mas foi em cartas para o meu Bem e eu sou tão preguiçoso que nem as vou reler nem vou passar os olhos pelos livros que me informariam, mais detalhadamente do que a minha memória, do meu passeio.” Então, que razão levou Sebastião a iniciar esse texto sobre a sua viagem? Explica: “Isto, de resto, não pretende ser uma obra literária de viagens; eu não quero, nem por sombras, enfileirar com os Godinhos e com os Mendes Pintos: apenas fixar as minhas recordações para uso próprio e para evitar cansar-me contando oralmente a viagem aos amigos que me peçam notícias.” Era, pois, claro o objectivo de Sebastião da Gama com esta narração, construção que ele preferia pela sua eventual eficácia prática, em vez de a ver como registo literário. No entanto, o jovem viajante não se alheava de todo dessa marca mais propositadamente literária, de outro modo não invocaria a tradição literária portuguesa da narrativa de viagens, como se vê pela referência a Manuel Godinho Cardoso (autor da “Relação do naufrágio da nau Santiago e itinerário da gente que dela se salvou”) e a Fernão Mendes Pinto (autor de “Peregrinação”).

Se o texto literário sobre esta viagem de Sebastião da Gama acompanhou o itinerário apenas até Bordéus, certo é que, ainda pela escrita, o jovem azeitonense legou reportagem das jornadas que seguiram nesta visita que tinha Paris como destino: a opção foi para uma mistura de géneros, entre o epistolar e o diarístico, nas cartas que, para a namorada, Joana Luísa, iam sendo escritas ao ritmo do diário, ainda que não enviadas à velocidade do correio. É assim que a narração da viagem ganha em emoção, seja pela descoberta, pela distância, pelos cenários vistos ou pela idealização dos momentos, fortemente marcados pela saudade da namorada ou do espaço arrábido onde Sebastião se sentia feliz.


A partir de Bordéus (local de onde envia um lacónico telegrama a Joana Luísa, recebido em 3 de Agosto, terça, dizendo: “Maravilhado Chego Paris talvez sexta, saudades”), o trajecto de Sebastião da Gama e seus companheiros de viagem, até à chegada à capital francesa, seguiu por Nantes, Avranches, Caen, Rouen, Dieppe, Abbeville e Amiens, pontos de que foi dando notícia.


Em 5 de Agosto, escreve de Caen, relatando: “Estou numa cidade que ainda não vi, mas sei que está quase completamente arrasada. Uns quilómetros antes, de uma povoação maior que Vila Nogueira só restam quatro ou cinco casas.” Sebastião da Gama confrontava-se, não só com a maravilha, mas também com as consequências do que fora a 2ª Grande Guerra, terminada havia três anos. O seu fascínio vai para a arte religiosa e para as descobertas: “Tu não podes fazer ideia da grandeza destas igrejas. São de uma beleza impressionante e só em Nantes há quatro, todas com vitrais lindíssimos. Às seis, já há missa e gente a ouvi-la. Em todas as igrejas um Santo António que, segundo vi, é muito adorado cá. E ontem, em S. Clément, Nantes, vi um já velho, de barbas, com um bordão e um livro vermelho na mão esquerda.” A paragem seguinte será Rouen, de onde regista num postal da cidade: “Aqui vai Rouen, com a sua catedral que fura o Céu”. A ideia é ainda aproveitada para uma declaração amorosa: “Aqui vai, alto como a torre de Rouen, o nosso amor.” Mesmo no dia da chegada a Paris, em 6 de Agosto, Rouen continua a dominar a sensibilidade de Sebastião da Gama: “A França até espiritualmente me alevantou. Este país ergueu catedrais que me alevantaram nas suas torres até ao Céu. Ah!, meu Bem, se tu visses a catedral de Rouen! Parece que a torre, esguia como um fuso, quer furar o céu. Sente-se a gente pequeno e sente Deus a mandar tudo.”


Chegado a Paris, num registo do que foi a última etapa, não esquece de dar as tonalidades que a Natureza conferia à paisagem (um aspecto que Sebastião nunca descurará), referindo que o trajecto de Dieppe a Abbeville “foi encantador. Verde, verde, verde. A certa altura, a estrada fechava-se de árvores de um e outro lado e a luz era verde também.”
O Louvre seria visitado logo no dia da chegada, a 6, numa das várias incursões que fará ao Museu. Depois, a passagem pelos Campos Elíseos e a contemplação do Arco de Triunfo e do túmulo do Soldado Desconhecido, onde a música (um dos traços, também, da sua poesia) o impressiona – “todas as tardes, um grupo de soldados da Grande Guerra (hoje eram ingleses) vai lá depor flores. Rufa um tambor, depois um clarim toca, segue-se um silêncio e novo rufo. É belo e edificante.” Mas o primeiro dia ficaria também marcado por alguma decepção relativamente à impressão deixada pelo amigo poeta André Figueras – parco em palavras, alguma apatia, marcas que Sebastião tenta apaziguar, pensando que no dia seguinte poderá mudar de opinião… Com efeito, logo em carta do segundo dia em Paris, corrige a opinião sobre o amigo: “Nós é que esperamos dos outros que eles sejam como nós, Portugueses; e eles são tão diferentes! Depois, lembra-te de que é um povo que sofreu muito.” A chamada de atenção parecia mais ser dirigida a si próprio do que à destinatária da missiva… No final do dia, em nova carta para a namorada, registava, aproximando-se do que sentia o amigo: “O caso do André está explicado: está à espera de uma carta da noiva e a carta não vem. Parece tu. Parece eu, ou quase, que esperava agora ter carta tua e não tenho. Estou impaciente por saber se recebeste as minhas palavras.”
Nesse segundo dia parisiense, visita Notre-Dame (que não o comove tanto quanto seria de esperar, pois continuava impressionado com a catedral de Rouen), passeia na margem do Sena em visita aos alfarrabistas (onde compra livros), revisita o Louvre e sobe à torre Eiffel. Sugestionado pelos gastos, pede a Joana Luísa: “diz a essa gente que eu não posso levar lembranças – a menos que não compre postais, nem livros, nem veja museus (tenho de ir umas oito ou dez vezes ao Louvre, que é enorme).” O dia ficaria completo com um encontro com o poeta e crítico literário Fernand Gregh (1873-1960), “tão simpático como belos os seus versos”, proporcionado pelo amigo André Figueras.
O quarto dia da estada em Paris, uma segunda-feira, começou para Sebastião da Gama com nova carta escrita a Joana Luísa, fazendo uma reflexão sobre o sofrimento que assolara a França durante a guerra e sobre a capacidade de reconstrução do país: “este povo sofreu terrivelmente enquanto nós dormíamos a sesta. Nós talvez não soubéssemos, como eles, cantar e trabalhar entre escombros de cidades.” Depois, conta o ocorrido com uma amiga de André Figueras: “A Francine, de quem o André fala no primeiro livro, foi levada para a Polónia e queimada lá. O meu almoço ontem foi um arrepio de alma porque lhe perguntei por ela.” Depois, em jeito de diário, Sebastião relata o seu domingo: visita a Fontainebleau e a Barbizon, uma “aldeia de França verdadeiramente bela para onde vão pintores de todo o mundo”.
Mais umas horas no Louvre e o Museu Rodin (“das mais fortes impressões que levarei de aqui”) constituíram o roteiro dessa segunda-feira. A visita às esculturas de Rodin foi feita na companhia de Matilde Rosa Araújo (1921-2010), que estava em Paris já desde 11 de Julho a frequentar um curso para estrangeiros na Sorbonne com outros amigos de Sebastião da Gama: Maria de Lourdes Belchior (1923-1999), Maria Teresa Meneses, António Coimbra Martins (n. 1927), Eugénio Cardigos e David Mourão-Ferreira (1927-1996). Nesta mesma segunda-feira, Sebastião da Gama encontrou-se ainda com David Mourão-Ferreira – não foi, contudo, o poeta azeitonense a informar sobre esse encontro, mas foi Mourão-Ferreira quem deixou registo no seu diário de 9 de Agosto: “O Sebastião da Gama chegou hoje. Contou-me que o Vasco Taborda Ferreira teve um grave desastre de automóvel em Espanha, quando seguia viagem para Itália.” De facto, cruzando os testemunhos, Sebastião da Gama não chegou a Paris naquele dia, mas apenas naquela data se encontrou com os amigos Matilde Rosa Araújo e David Mourão-Ferreira.


Será no dia seguinte, em que os museus estavam fechados, que Sebastião vai passear até ao Bois de Boulogne, numa busca de espaço verde, que merece o seguinte comentário em carta desse mesmo dia (10 de Agosto): “Parece mentira que o exemplo dos Franceses não leve quem manda no turismo da nossa terra a velar pelas árvores. Sabes os tristes acontecimentos da Arrábida. Pois aqui, onde a lenha deve ser ainda mais necessária, o que mais encontramos são parques e florestas de um encanto enorme, como este Bois de Boulogne que tem léguas e léguas.” As referências à Arrábida e à saudade da sua paisagem perpassam ao longo de muitos dos vinte registos de viagem que Sebastião endereçou a Joana Luísa e o comentário perante o arvoredo do bosque dos arredores parisienses não pode ser desligado da acção que o poeta tivera um ano antes, pedindo a várias individualidades a defesa da Mata do Solitário e a condenação de quem andava a destruir a vegetação daquele espaço arrábido para lenha…
O dia fora-lhe ainda comovente por ter conseguido concluir a aquisição da obra de Verlaine em sete volumes e porque foi ao cinema ver o “Bambi”, fita que deixou Sebastião da Gama entusiasmado de forma a, ternurento, enviar mensagem nos dias seguintes à namorada em dois postais de desenhos animados, prometendo num deles: “A primeira escola dos nossos filhos serão os filmes de Walt Disney – a escola de Poetas mais perfeita que jamais vi.”

Nova incursão no Louvre, Sebastião da Gama fá-la-á na quarta-feira, 11 de Agosto, com uma promessa: “irei lá ainda, se tiver tempo, para ver novamente a pintura que mais me agradou”. Apesar do dia fatigante, no registo dessa data, planeia ainda o resto da viagem – acabar de ver Paris, visitar Versailles e Chartres. Desta última cidade chamava-o a catedral, talvez “a mais bela de França”, país cuja “gente parece que nasceu para fazer catedrais”, explica a Joana Luísa.


A jornada seguinte, em que “choveu a potes”, foi ocupada com uma ida a Les Halles, espaço que o deixou impressionado com a riqueza e variedade dos legumes e dos frutos à venda. Visitou a igreja da Madeleine (onde regressará no dia 15 para ouvir um concerto de órgão), os Museus dos Impressionistas (Jeu de Paume) e da Pintura Francesa e a exposição consagrada a Jacques-Louis David, havendo ainda tempo para um giro em busca de “livros, livros, livros”, o que o fará repetir a ideia das ofertas para os conhecidos: “levo quase nenhumas lembranças para os outros, porque a pessoas a quem não posso dar livros é difícil dar outra coisa sem me roubar a mim uns tantos livros.”


Da sexta-feira, há pouco registo quanto a visitas, mas Sebastião relata que foi ver um filme em que acontecia “um fuzilamento de empregados dos comboios”. Sem identificar o título da obra, bem poderá ter sido a fita “La bataille du rail”, realizada em 1946 por René Clément, que evoca o papel dos ferroviários na Resistência francesa. Ficou impressionado com algumas cenas do filme e a questão das sonoridades levou-o ao seguinte desabafo: “Durante, antes e depois de o dito fuzilamento, os comboios rangiam e apitavam e era a lamentação musical mais comovente, mais aguda e mais bela que eu jamais ouvi.”


Em 14 de Agosto, a visita foi ao Sacré Cœur (“bastante imponente, está panoramicamente para Paris como para Lisboa o Castelo de S. Jorge”, explicará a Joana Luísa), Montmartre (“um Paris diferente”), Sainte Chapelle (“uma jóia de arquitectura”), casa de Victor Hugo, Biblioteca Nacional, Museu Carnavalet, Saint Sulpice e Saint Germain des Prés.
Mesmo longe, em passeio e visitas, Sebastião da Gama sentia a presença da Arrábida. Havia as saudades da família, é certo, havia as saudades da namorada (muitas vezes referidas) e havia também uma permanente saudade da serra. Durante uma parte do tempo que a visita durou, Joana Luísa estava na Arrábida, a passar uns dias na praia. Provavelmente terá dito ao noivo que o tempo estava ventoso, porque, em Paris, Sebastião escrevia em 16: “Só te não perdoo dizeres mal do Vento… Sem ele, como teria eu escrito os melhores dos meus versos? Engolfa-te nele, abisma-te nele, ama-o e verás. Enrodilha-te no Vento e verás. Morde o Vento e verás. Ah, não tê-lo eu aqui à mão, ao viril Vento da Arrábida!…” Neste dia, o passeio acentuou a saudade ao visitar Le Planeau, “um aglomerado de umas doze casinhas de colmo”, em que cada casa se lhe afigurava como “um verdadeiro ninho”, espaço onde desejaria estar com a noiva, “um sítio onde eu gostaria (e gostarei, se Deus quiser) de vir contigo.” O encanto sentido naquele espaço serviu-lhe para idealizar um encontro com a namorada, confidenciando: “Que pena não ires pelo meu braço! Não há muitos minutos que eu disse alto: Meu Amor. OUVISTE?”


É também de 16 de Agosto uma carta que Sebastião envia para o primo azeitonense Artur Cardoso, não escondendo a protecção da Natureza como uma paixão comum aos dois amigos: “Que coisas maravilhosas te obrigariam a ficar aqui! Só o que neste país e nesta cidade há de árvores é suficiente para apaixonar um portuguesinho valente. Na nossa terra destroem-nas; aqui, cultivam-nas, amam-nas como a manjerico.”
Data de 17 de Agosto o relato para Joana Luísa de mais uma descoberta em Paris, provavelmente ocorrida no fim de semana: “E pensar eu que por um triz não ia ver as Folies Bergère! Tu não podes imaginar que deslumbramento de espectáculo é ele em certos momentos.” Sebastião foi, contudo, um assistente crítico – não achou interesse nas piadas políticas, considerou haver falta de unidade entre as várias cenas, achando mesmo que “mais de metade dos quadros são aborrecidos e, a meus olhos, estúpidos.” No entanto, alguns impressionaram-no fortemente, chegando mesmo a descrevê-los com alguma minúcia. A apreciação global do espectáculo passou também pelos aspectos positivos – “Tinha coisas encantadoras, tão cheias de arte, um cenário e uma mise-en-scène tão ricos e tão belos, um guarda-roupa tão maravilhoso que eu saí de lá encantado.”
Há ainda uma referência breve à ópera “As Valquírias”, que foi ver. Porém, apesar de reconhecer ter tido bons intérpretes e uma boa mise-en-scène, a apreciação incide sobre a grandiosidade do edifício, a Ópera – “é uma maravilha. O foyer é todo em talha dourada, a sala é circular e também em talha muito bonita e, quando se sai, há uma espécie de varanda que faz um grande quadrado sobre um patamar para onde dão duas escadas de mármore.”


Nessa terça-feira, Sebastião foi, a conselho de André Figueras, a Saint Germain-en-Laye, tendo-se deixado impressionar pelo castelo e pelo panorama ao longo do trajecto. A dado passo, caminhou junto do Sena durante quatro quilómetros, aproveitando um sentir algo idílico que o aproximou de outro rio, no Norte de Portugal, o Lima, que ele bem conhecia (evocado nos poemas “Fui dizer adeus ao Lima”, com primeira divulgação na revista “O Escritor” – 1993, nº 2 -, e “Romance do Lima”, com primeira publicação na revista “Colóquio-Letras” – 1995, nº 135/136 -, ambos depois publicados na obra póstuma “Estevas”, em 2004): “Que encanto, meu Amor! É o Lima – a mesma doçura, o mesmo carinho verde debruçado sobre ele. Por defeito único, os carros a fazerem barulho – lá no Lima o rio foge-lhes.”
O final do dia 17 passou-o Sebastião noutras descobertas – “Gastei bem 560 francos numa volta que me deixou feliz: todo o Bairro Latino foi meu campo de batalha, vi a Universidade e entrei em mil livrarias – daí deriva todo o meu mal.”


No dia seguinte, 18, quarta-feira, um postal com os alfarrabistas do cais do Sena é enviado a Joana Luísa, anotando: “Esta fotografia é tão bonita e é tão própria para eu te mandar, que resolvi dizer-te adeus nela. Paris acaba amanhã – Paris visto, que o Paris lembrado não pode acabar.” Mas é também desse dia uma longa carta em que Sebastião fala das saudades e da sua paixão por Joana – “abençoada seja a doce França, que tão mais belo e tão mais alto fez o nosso Amor. Abençoada seja esta saudade (…)! Há lá coisa melhor do que, pela saudade, pesar este grande Amor que te devo, que talvez te mereça, que é a graça Maior que Deus me deu?”
Este último dia em Paris não podia passar sem mais uma história em torno de livros. Sob o título “Coisas que me acontecem”, Sebastião registou o episódio: “Saio depois de jantar, a dar uma volta breve. Paro em frente de uma livraria, onde há livros para crianças. Gentilmente, a Senhora abre-me a porta e entro. Converso. Vejo livros. Converso. Vejo livros. Compro dez livros a 5 frcs. e 2 a 10. Converso. Saio. Tinha-se passado uma hora. Na montra em que não me demorara, vejo agora um livro de arte que muito me interessa. 1200 frs. Podia gastá-los mas não quero; tenho sabido dizer-me mil vezes que não. Pergunto: ‘Se eu lhe mandar pedir de Portugal, pode mandar-mo?’ Que sim senhor. Que até lho podia pagar em conservas. E de repente: ‘Olhe, leve-o. E mande-me conservas até 1200 frs.’ Isto é para ficar na história.”


Na quinta-feira, Sebastião deixava Paris rumo a Chartres. Em nota de viagem, registou: “Chartres é maravilhoso. Deve ser a catedral mais antiga de todas que vi e impressiona pela beleza das linhas e pelo encantador dos vitrais e das esculturas. A cidade é a mais bonita das que vi: um ar de aldeia grande, acolhedor e limpo. Casas velhíssimas. Numa janela, adorável, meia dúzia de flores a escreverem um poema.” Deixa-se ainda impressionar pelo corredor da cripta: “tem mais de vinte metros, tem aí três de largura e é todo ele, como a capela, iluminado por pequenas lâmpadas que dão uma luz religiosa. É impressionante olhar quer do fundo do corredor, quer da capela. Aquele corredor é uma oração.” O registo sobre Chartres é feito no comboio, em jeito de diário, terminando com uma nota de humor: “Vai ao pé de mim (na carruagem) uma freira que teria dado uma gentilíssima francesa. Reza. Tem olhos enormes, azuis, pestanudos. Será Santa Teresinha?”

Desta viagem não houve mais locais descritos, sabendo-se ainda que teria intenção de, no regresso, passar por San Sébastian. Se esteve nesta cidade, não fez constar tal visita nas suas notas; certo é que, em 21 de Agosto, sábado, Sebastião da Gama entrava pela fronteira de Vilar Formoso. Brevemente estaria bem próximo de quem amava para contar de viva voz as emoções que já deixara passar nas cartas.


Três dias depois, escrevia carta ao seu amigo Eurico Lisboa, revelando: “Cá estou, com os olhos grávidos de Beleza.” Será talvez esta afirmação o melhor resumo daquilo que Sebastião procurou nesta viagem… ficando sempre a sensação de que este viajante oscilou entre pontos de identificação (a aproximação a cenários em que a Natureza se lhe afigurava mais pródiga), prazer estético (visitas a igrejas e museus, com incidência no Louvre, e assistência a espectáculos e concertos), reconhecimento cultural (busca de edições de autores preferidos ou estudados na língua original), deambulação (em percursos ao longo da cidade ou nos arredores, por vezes, sem destino previsto), provação (a forma como lida com a saudade – seja da mulher amada, Joana Luísa, seja da “sua” Arrábida – é uma maneira de crescer e de pôr à prova os seus sentimentos) e partilha (não tendo deixado um texto completo e ordenado para os seus leitores a relatar a experiência, fez, no entanto, com que Joana Luísa fosse a companheira de viagem através da narrativa escrita quase diária do vivido, prática que quase salvou o sonho do poeta, que, nestes registos, prometeu à namorada visitarem juntos alguns dos sítios, empenho impossibilitado pelos limites da vida). Na verdade, a frase que Sebastião da Gama escreveu para Eurico Lisboa abre as portas para o poema que a viagem também foi…

João Reis Ribeiro


OBS.: 1) A correspondência citada ao longo do texto está incluída o espólio de Sebastião da Gama pertencente à Associação Cultural Sebastião da Gama. A referência a esta viagem no diário de David Mourão-Ferreira foi-me dada a conhecer por Pilar Mourão-Ferreira (f. 2018), que, numa tarde de 2015, me facultou as citações desse diário (inédito) relativas a Sebastião da Gama. 2) Este texto foi originalmente publicado no jornal Setúbal Mais, nos números 138, 139 e 140, em 18/07, 22/08 e 05/0