Helena de Sousa Freitas, coordenadora de “Histórias que as Paredes Contam”: “Devolver à cidade um passado que lhe pertence é a ambição maior do projeto”

Helena de Sousa Freitas nasceu em Lisboa, em 1976, e cresceu em Setúbal, onde reside, sendo uma mulher multifacetada. Licenciada em Comunicação Social (ESE-IPS), pós-graduada em Direito da Comunicação Social (FD-UL) e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação (ISCTE-IUL), foi jornalista da Lusa, é ecologista convicta, desenvolve ações cívicas na sociedade, é fundadora do “Monte de Letras” e está a realizar o projeto “Histórias que as Paredes Contam – 50 Anos de Muralismo em Setúbal”. É uma apaixonada por murais, recolheu as imagens de 300 que contam partes da história da cidade.

Florindo Cardoso

Setúbal Mais – Como surgiu o interesse pela temática dos murais na cidade de Setúbal?

Helena de Sousa Freitas – Recuando no tempo, ocorre-me uma memória de infância… Como a minha mãe não tinha carro, todos os dias se deslocava a pé entre a nossa casa, na zona da Alves da Silva, e o seu local de trabalho, no bairro Salgado, levando-me pela mão. Estávamos no início dos anos 80 e eu, ainda pequena, ia pela cidade vendo o que se pintava e escrevia nas paredes. Lembro-me, por exemplo, de me deparar com a sigla “LUAR” e de ter ficado a saber que se tratava de um grupo político. Para mim, até então, era apenas a luz da lua… [risos] Mas foi mais tarde, na segunda metade da década de 90, quando estava a estudar comunicação social, que tive o impulso de começar a “salvar” os murais e pichagens, por ver neles um documento histórico com tanto de relevante como de efémero. Não podia levar as paredes e muros para casa, mas os registos fotográficos permitiam-me guardar aquelas imagens e inscrições para a posteridade, pelo que, ao longo dos anos seguintes, fiz o levantamento possível com o tempo e os meios de que dispunha.

Setúbal Mais – Escolheu o muralismo em Setúbal para tema da sua tese de doutoramento. Como foi recebido?

Helena de Sousa Freitas – Talvez pela sua forte ligação a Setúbal, o professor José Rebelo, neto de Jaime Rebelo, o ‘Homem da Boca Cerrada’, não hesitou em ser orientador da minha tese e o tema teve, até, um acolhimento caloroso. O facto de se tratar de algo novo em termos de abordagem académica em Portugal também o tornava entusiasmante, tanto para quem orientava como para quem investigava. Mas as dificuldades encontradas logo de início foram severas: além de a bibliografia sobre muralismo em Portugal ser praticamente inexistente, também os arquivos fotográficos de murais são em número reduzidíssimo. Esta escassez – de que já suspeitava e que então confirmei – fez-me considerar ainda mais necessárias recolhas como a que vinha fazendo localmente desde os anos 90.

Setúbal Mais – Do levantamento feito, que evolução é possível traçar das mensagens dos murais?

Helena de Sousa Freitas – O facto de cada mural ser, geralmente, uma peça muito própria e dependente do contexto da sua execução, dificulta o traçar de uma evolução. Mas existem alguns padrões interessantes a assinalar no que toca às temáticas focadas.

Por exemplo, os murais criados em liberdade nos anos 70 são, sobretudo, de celebração da democracia e apelo ao voto, emanando esperança numa nova sociedade.

Já na década de 80, a crise no tecido industrial da região originou murais assinados por sindicatos e por grupos de trabalhadores – tanto em paredes exteriores de instalações fabris como em artérias movimentadas da cidade –, em que se reivindicava a diminuição do horário de trabalho, o pagamento de salários em atraso ou a reabertura de fábricas.

Por seu turno, os anos 90 viram as preocupações ambientais ganhar espaço, devido a casos como as escórias da Metalimex, ou a co-incineração na Arrábida. Foi também nessa altura que surgiram as primeiras mensagens contra o designado “turismo de luxo” em Tróia, tema que viria a motivar múltiplas intervenções nas duas décadas seguintes.

E é este retrato que os murais fazem do tempo e espaço em que se inserem que os torna peças tão importantes para a História, nomeadamente no âmbito local.

Setúbal Mais – Quantos murais conseguiu documentar ao longo destes anos?

Helena de Sousa Freitas – Entre murais e pichagens com conteúdo político ou social, fotografei mais de 300. Lembro-me, porém, de alguns de que não guardei registo. A certa altura, pensei que, se eu não me encarregasse de fotografar, decerto outro alguém na cidade o faria, talvez até de forma mais sistemática e com melhores recursos do que aqueles que eu então possuía. Uma imprudência de cujas consequências só me dei conta quando, ao ir em busca dessas imagens, concluí que, pelos vistos, ninguém as captara.

Setúbal Mais – Há uma tendência para o desaparecimento dos murais. A que se deve isso? À moda do graffiti artístico?

Helena de Sousa Freitas – Os murais e pichagens nunca foram propriamente uma constante nas paredes, antes surgindo em períodos de convulsão política e social e/ou como manifestação de descontentamento de partidos, estruturas sindicais ou outros grupos face a dada situação. Em Portugal, a sua mais recente vaga teve lugar em reação à crise e à presença da Troika. Aliás, eu previra terminar a análise para a tese em 2010 e prolonguei-a até 2014 para poder refletir sobre esses murais. Portanto, eu diria que a prática mural nunca se extinguirá. Todavia, não há dúvida de que o espaço disponível para o mural na malha urbana é hoje bem mais reduzido do que outrora, quer devido à presença esmagadora da publicidade, quer devido à competição do graffiti artístico, contra o qual nada me move, mas que sei ser frequentemente chamado a ocupar áreas antes usadas para o muralismo.

Setúbal Mais – Lançou o projeto “Histórias que as Paredes Contam – 50 Anos de Muralismo em Setúbal”, integrado nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Pode descrever o projeto, o que este já realizou e o que está previsto?

Helena de Sousa Freitas – O projeto é a primeira iniciativa do ‘Monte de Letras’ em torno da liberdade, valor que não pode ser dado como adquirido, sobretudo numa democracia jovem como a nossa, e propôs-se realizar um ciclo de cinco conversas em torno do muralismo, duas exposições fotográficas, cinco murais, um álbum fotográfico com registos captados desde 1974 e um breve documentário sobre o conjunto de iniciativas. A quinta e última conversa tem lugar dia 30 de janeiro, a primeira das exposições esteve patente durante dezembro na Casa da Cultura e o primeiro dos murais foi pintado coletivamente sob a orientação do convidado que inaugurou as conversas, o artista plástico e muralista chileno Alejandro “Mono” González. Um segundo mural está na calha e o álbum encontra-se em preparação. Tudo o resto, está por concretizar. Mas como o projeto vai até junho, ainda há cinco meses para fazer acontecer as restantes iniciativas.

Setúbal Mais – Como foi a experiência de trazer a Setúbal o “Mono” González, que é o mais antigo muralista em atividade?

Helena de Sousa Freitas – A sua vinda superou amplamente as expectativas. Conheci o trabalho do “Mono” González quando investigava para o doutoramento, mas só ao ouvi-lo falar no Museu do Trabalho, em setembro de 2023, me dei verdadeiramente conta de quão profunda e vasta é a reflexão de que ele faz acompanhar cada obra. Foi dele a ideia de criar um mural com a participação de quantos quisessem juntar-se, assim nascendo a mulher-pomba que pode ser apreciada n’A Gráfica.

Setúbal Mais – Em Portugal, o maior detentor de fotos de murais é António da Paixão Esteves, que convidou para a exposição na Casa da Cultura. Pode também relatar essa experiência?

Helena de Sousa Freitas – O Paixão Esteves, que é um militar de Abril, encontrava-se de serviço em Angola quando veio em férias matrimoniais a Portugal. Estava-se em 1975 e ele deparou-se com a explosão de cor dos murais do PREC. Tendo máquina fotográfica, começou a documentá-los. Nessa altura, creio que o fez sobretudo na capital; posteriormente, país fora. Mais recentemente, ampliou a sua recolha ao estrangeiro. Quando lhe bati à porta pela primeira vez, guardava as fotos numa enorme caixa, como as dos vestidos de noiva, alojada no cimo de um guarda-fatos. Após fazer descer a caixa, deixou-me a sós com ela no seu quarto. Um voto de confiança numa total desconhecida que diz muito sobre a sua pessoa.

Atualmente, tem o seu acervo, que ascende a mais de um milhar de imagens, digitalizado e em fase de catalogação.

Quando o convidei para participar na exposição “Paredes Limpas, Povo Mudo”, alinhou sem hesitar, tendo estado presente na inauguração. Interveio também na quarta conversa do projeto, devendo comparecer à sessão com o último convidado, o sociólogo irlandês Bill Rolston. Estou-lhe muito grata pelo entusiasmo e pelo apoio ao conjunto de iniciativas.

Setúbal Mais – Bill Rolston é o maior investigador desta temática. Qual a expectativa em relação à sua intervenção?

Helena de Sousa Freitas – O Bill Rolston está para a teoria do muralismo como o “Mono” González para a prática. Ou seja, são dois autores constantemente referidos pelas suas obras, dois nomes assíduos nos artigos científicos e livros sobre o tema. Daí o projeto querer trazê-los a Setúbal no âmbito do cinquentenário da Revolução.

Dá-se ainda o caso de os termos connosco em torno de datas tão historicamente significativas como os 53 anos da vitória de Salvador Allende no Chile, celebrados em setembro de 2023, e os 52 anos do Domingo Sangrento na Irlanda do Norte, que se assinalam no próximo dia 30 de janeiro, o que constitui uma mais-valia.

A conversa com o Bill Rolston tem por título “Dos Troubles ao Brexit – a expressão muralística na Irlanda do Norte” e ele vai apresentar e contextualizar um conjunto de imagens de murais de Belfast, cabendo à organização do projeto estabelecer paralelismos com Setúbal.

Sendo ele a autoridade internacional que é na matéria e tendo eu já visto online quão animadas e veementes são as suas intervenções, acredito que o ciclo de conversas fechará com chave de ouro.

Setúbal Mais – Defende a criação de um espaço em Setúbal para receber as fotos dos murais pintados na cidade?

Helena de Sousa Freitas – Nunca me ocorreu tal ideia, mas parece-me excelente. Afinal, num dia, os murais estão ali, a construir a História, e, no dia seguinte, podem ter desaparecido. Uma efemeridade que só consegue ser mitigada pela imagem que deles ficar, e um espaço dessa natureza daria forma à ambição maior do projeto: devolver à cidade um passado que lhe pertence.