Entrevista com Paulo Guerra, atleta: “Não me lembro de nenhum atleta de alta competição que tenha tido o reverso da medalha como eu”

Paulo Guerra, de 45 anos, penta campeão da Europa em corta mato, é o atleta mais medalhado na história do atletismo nacional. O atleta olímpico, que representou o Sporting Clube de Portugal e o Maratona Clube de Portugal, abandonou a competição em 2008 devido a problemas de saúde. Em entrevista ao Jornal Setúbal Mais, como embaixador da Ultra Maratona Atlântica Melides /Tróia, aborda a sua carreira, as dificuldades desta maratona e o novo modo de vida, após sobreviver a graves problemas de saúde.

 Florindo Cardoso

 

Setúbal Mais – Como surgiu o convite para ser embaixador da Ultra Maratona Atlântica Melides/Tróia?

Paulo Guerra – Através da empresa que este ano organiza a prova, uma vez que a Câmara Municipal de Grândola decidiu em 2016 profissionalizar a competição. O treinador de toda a minha vida desportiva, Rafael Marques, ligado ao Maratona Clube Portugal, faz parte dessa empresa. Ele disse-me então: Paulo, tu participaste em várias provas de atletismo, estamos a querer implementar várias provas deste tipo no Alentejo, e vamos organizar a Ultra Maratona Melides/Tróia, tendo como objetivos alavancar o número de inscritos e dar-lhe um carisma internacional, e, como és alentejano e devido ao teu currículo, nada melhor que seres embaixador das nossas provas. Daí estar associado a esta competição.

S.M. – Sentiu-se honrado pelo convite?

P.G. – É óbvio. Uma das coisas que actualmente mais me realiza, pessoalmente, e às vezes as pessoas podem até não entender, no após-carreira, é fazer parte deste mundo do atletismo como embaixador, participar nas organizações e no contacto com os atletas. Realizo-me mais do que quando era atleta de alta competição, onde tinha de lutar pelos primeiros lugares e abdicava do resto. Era eu o objectivo! Agora, usufruo mais das coisas, com uma dimensão muito maior, e consigo uma realização pessoal muito mais intensa que se transforma em alegria.

S.M. – Considera que o atletismo pode funcionar como promotor do turismo no Alentejo…

P.G. – Não tenha dúvida! Cada vez mais e tenho estado muito atento, principalmente no último mês, que há muitas empresas a nível internacional que estão a criar pacotes de férias em que os turistas levam as sapatilhas para treinar. Por exemplo, aqui, na Comporta, Grândola e Tróia, os turistas vão fazer férias em conjunto com o atletismo. Pacotes com hotel, a prova, e visita a outras partes do interior do Alentejo. É o turismo que mais vai crescer nos próximos dez a vinte anos.

S.M. – Participou em 2007 na Ultra Maratona, como classifica o grau de dificuldades desta prova?

P.G. – É intenso. No meu caso, não foi só a questão da extensão (43 Km) mas o piso em areia, que é diferente do asfalto ou terra batida, e que aumenta em muito o grau de dificuldade. A corrida em areia pode levar o atleta a incorrer no dobro do esforço face ao incorrido em pisos de asfalto ou de terra batida. A minha dificuldade foi a areia que entrou nos ténis, tive de parar três vezes, tirei, coloquei e tirei definitivamente as meias. Apesar de não ter tanta dificuldade em correr na areia, porque sempre fui um atleta com uma vertente diferente à base de força, correndo muito bem na lama, quando mais difícil fosse o corta mato melhor para mim. Como estava habituado a corridas com grande resistência, progredindo, não estranhei muito, embora as dificuldades fossem sobretudo a areia e o piso inclinado na primeira metade da corrida (Melides-Comporta). Para mim, a areia foi a grande dificuldade.

S.M. – Chegar ao fim, numa prova destas nos primeiros lugares, é preciso ter uma grande capacidade de resistência…

P.G. – É, para quem compete. No meu caso, a participação em 2007 na Ultra Maratona já me apanhou no final da carreira, já que em 2008 abandonei as competições. Não fiz nenhum treino de preparação para a Ultra Maratona. Ouvi falar nesta prova porque houve um amigo que me desafiou para ver quem ganhava e decidi participar. No final da minha carreira, desafiaram-se para muitas coisas e nunca disse que não. Por exemplo, fiz a travessia do Tejo a nadar 3 Km, duas provas de natação em águas abertas, duatlo aquático, triatlos e esta corrida. No após carreira, de todos os atletas que chegaram ao alto nível em Portugal, não me recordo de nenhum que tenha feito outros desportos e que continue em actividade física. Estou integrado no programa nacional de marcha e corrida. Nos últimos quatro e cinco anos, tirei os cursos de personal trainer e de técnico de corrida e marcha, no Porto. Tudo para aumentar o conhecimento, para ajudar os outros a praticar a actividade desportiva, através de exercícios que evitem lesões e motivação para progredir e ter hábitos saudáveis.

S.M. – É um sobrevivente ao cancro, como encara a vida depois dessa situação de saúde?

P.G. – Não só do cancro de pele. Estive à beira da morte durante 22 dias, ligado às máquinas, na cama de um hospital. Não me lembro de nenhum atleta de alta competição como Fernando Mamede, Carlos Lopes, Fernanda Ribeiro, Rosa Mota, que tenha atingido o topo e que tenha tido o reverso da medalha como eu. Já tive três problemas de saúde gravíssimos e felizmente consegui ultrapassá-los. O último, há um ano e meio, o mais grave de todos, irá acompanhar-me para o resto da vida porque matou-me uma parte das células do cérebro e elas não voltam a regenerar. Fiquei com sequelas, perdi o paladar, para mim comer uma sardinha ou banana é igual, não tenho olfacto e em casos extremos, epilepsia. Perdi 2 ou 3 por cento das memórias que estou conseguindo readquiri-las, reavivando a memória. Se uma vez fui campeão, tenho de voltar a ser na doença.