Em 31 de Julho de 1948, o jovem Sebastião da Gama, com 24 anos, atravessava a fronteira luso-espanhola a caminho de Paris. Sobre o passaporte, em que constava a profissão de escritor, eram apostos nesse dia os carimbos dos postos fronteiriços de Vilar Formoso e de Fuentes de Oñoro e, no dia seguinte, o de Irún. Já em 2 de Agosto, recebia o selo de Hendaye. Era uma viagem que se iria prolongar até 21 de Agosto, um sábado, data em que o passaporte volta a receber o registo do posto de Vilar Formoso, agora para assinalar o regresso.
Esta viagem de Sebastião da Gama, a única que fez ao estrangeiro, andava já a ser preparada, pelo menos desde o primeiro trimestre do ano – em 20 de Março, André Figueras (1924-2002) escrevia de Paris ao amigo Sebastião a dizer-lhe que o custo do encontro seria o da viagem, já que a sua casa estava disponível para receber o poeta de Azeitão durante a estadia nas margens do Sena.
Figueras, homem ligado à Resistência francesa desde os 17 anos, interventivo, era também poeta e terá sido esta faceta que cimentou a amizade entre os dois. Na carta de Março, Figueras dizia: “Foi delicado da sua parte traduzir-me os seus poemas e estou-lhe reconhecido por isso, porque eles são muito belos, sensíveis e inteligentes, como deve ser, parece-me, a verdadeira poesia.” Havia, portanto, troca de poemas entre os dois amigos e uma ligação literária forte.
Em Dezembro do ano anterior, Sebastião compusera um poema em cinco quadras de versos decassilábicos, “Ô couronnés de sang et d’amertume”, dedicado a André Figueras e enviara-lho. Nesse texto, inserido na obra póstuma “Estevas” (2004), Sebastião da Gama glorificava os jovens resistentes franceses, que colocava sob o patrocínio de Joana d’Arc, para eles implorando logo no início: “Ô jeunes gens du doux pays de France, / votre effort a fleuri. Soleil de France, / viens bénir ceux qui t’ont ressuscité.” Remetido o poema para o seu destinatário, acabou por ter a sua primeira publicação em Paris, já que Figueras publicou em 1948 o livro de poemas “La France et le Soleil”, prefaciado por Fernand Gregh, e aí inseriu o poema que Sebastião da Gama lhe oferecera. Contudo, Figueras foi ainda além desse gesto, contemplando o poeta azeitonense com um poema de oito quadras intitulado “Réponse à Sébastiao da Gama” (escrito sob a impressão da leitura de “Cabo da boa Esperança”) também publicado nesse livro, trazendo para a última estrofe a paixão que os dois amigos nutriam pela França: “Nous t’aimons tous les deux, ô mon pays de France, / Lui de chez Camoëns et moi de chez Hugo; / Car malgré le langage et malgré la distance, / Comment ne pas t’aimer avec des cœurs égaux?”
Em Outubro de 1948, Sebastião da Gama iniciou a escrita de umas “Notas de Viagem” sobre este seu passeio a França, sem que tivesse passado de um primeiro capítulo intitulado “A doce França” (inserido na obra “O Segredo é Amar”, de publicação póstuma). É elucidativa quanto às intenções da viagem a forma como o texto se inicia: “A França era muita coisa, mas era principalmente a terra de Baudelaire e de Verlaine. Acenava-me de lá, também, a mão amiga do André Figueras, o poeta violento do ‘Chant de notre mort’. Fui. Parti de Lisboa numa manhã antipática, às seis da manhã.” Com efeito, nota-se que a primeira preocupação é de âmbito cultural, através das evocações de dois dos nomes maiores das letras francesas, assim funcionando esta viagem como um complemento à licenciatura que Sebastião da Gama completara nesse ano de 1948 em Filologia Românica; por outro lado, há a referência ao amigo francês Figueras – na biblioteca do poeta azeitonense, constavam vários títulos do amigo, como “Châteaux en azur” (1947), “La France et le soleil” (1948), “Mon cœur parmi son mal” (1949), “Instantanés nerveux” (1950) e “Onze Novembre” (1951), todos autografados, com a particularidade de o último conter já uma dedicatória também dirigida a Joana Luísa, casada com o poeta em Maio de 1951, “À Monsieur et Madame Sebastiao da Gama leur ami AF”.
O relato publicado desta viagem, Sebastião só o fez até à chegada a Bordeús. A partir do momento em que regista a entrada em França, o viajante quase se transfigura num quadro de felicidade: “E então é que foi arregalar os olhos e ficar contente! A estrada é sempre orlada de grandes árvores muito verdes, que são a guarda avançada de matas vastíssimas, lindíssimas. Quase não há um metro de estrada em que não haja uma, duas, mil árvores. E eu, que não sabia que a França era tão bonita e tão verde, ia feliz como um pássaro.”
Com a viagem a decorrer em automóvel, na companhia de amigos, as paragens podiam ser muitas, com o objectivo de muito ver. E o grupo vai visitando St. Jean de Luz, Biarritz, Bayonne, Lac Léon, Mimizan, Bordéus. O prazer da descoberta ia desde as pequenas coisas (o uso generalizado da bicicleta como forma de locomoção – “havia-as pedaladas por velhas setentonas, havia-as pedaladas por freiras”; o gosto de meter conversa com a mulher da taberna, “uma velhota estupenda que vale uma página”) até àquelas que mais intrinsecamente estavam ligadas à forma de ser e à poesia de Sebastião da Gama, como o verde da paisagem ou o fascínio perante as construções religiosas – “as igrejas deram-me chama, deram-me alma, deram-me Deus”.
Bordéus foi, como ficou dito, o último ponto desta narrativa de viagem e poder-nos-emos admirar pelo facto de, perante tão intensa experiência, Sebastião da Gama não ter feito um diário da mesma (ele, que até escreveu um diário da sua profissão). Contudo, é o próprio poeta que se justifica dessa falta quando escreve nesse texto: “É que para viver tudo o que ia vendo, para cada minuto ser uma brasa na minha carne, eu tinha de não ir escrevendo o meu diário; a partir de Nantes, em papéis soltos, ainda escrevi uma ou outra referência muito vaga. Só em Paris, com mais calma e mais tempo, pude pormenorizar – mas foi em cartas para o meu Bem e eu sou tão preguiçoso que nem as vou reler nem vou passar os olhos pelos livros que me informariam, mais detalhadamente do que a minha memória, do meu passeio.” Então, que razão levou Sebastião a iniciar esse texto sobre a sua viagem? Explica: “Isto, de resto, não pretende ser uma obra literária de viagens; eu não quero, nem por sombras, enfileirar com os Godinhos e com os Mendes Pintos: apenas fixar as minhas recordações para uso próprio e para evitar cansar-me contando oralmente a viagem aos amigos que me peçam notícias.” Era, pois, claro o objectivo de Sebastião da Gama com esta narração, construção que ele preferia pela sua eventual eficácia prática, em vez de a ver como registo literário. No entanto, o jovem viajante não se alheava de todo dessa marca mais propositadamente literária, de outro modo não invocaria a tradição literária portuguesa da narrativa de viagens, como se vê pela referência a Manuel Godinho Cardoso (autor da “Relação do naufrágio da nau Santiago e itinerário da gente que dela se salvou”) e a Fernão Mendes Pinto (autor de “Peregrinação”)
João Reis Ribeiro