A primeira obra que Sebastião da Gama publicou, “Serra Mãe” (1945), entrou na toponímia azeitonense em 23 de Março de 2016, quando, em sessão pública da Câmara de Setúbal, foi aprovado dar o nome de “Serra Mãe” ao troço entre a Estrada Nacional 379-1 e o Portinho da Arrábida. Não serão muitas as obras literárias que emprestaram o seu nome à toponímia, mas as ligações da Arrábida à literatura, desta obra à Arrábida e de Sebastião às duas foram motivos fortes para que este tipo de atribuição fosse por diante e, em 30 de Abril de 2016, era ali descerrada adequada placa toponímica.
Há duas histórias na vida de Sebastião da Gama (1924-1952) que funcionaram como premonitórias relativamente à sua relação com a Arrábida: a primeira ocorreu na sua infância, quando ainda pronunciava algumas palavras com a marca infantil; a segunda aconteceu em 1944, antes de o poeta ter publicado qualquer livro.
Ambos os momentos são de fácil relato. Na infância, em data não determinada, o jovem Sebastião foi passear à Arrábida acompanhado por alguém adulto. Ao chegar a casa, encheu-se de satisfação ao declamar para a mãe um poema: “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia.” O poema, chamemos-lhe assim, tinha estrutura adequada – uma quadra, com equilíbrio métrico entre o primeiro e o terceiro versos e entre o segundo e o quarto, em que está presente a rima cruzada entre o segundo e o quarto, em palavras esdrúxulas; se a estrutura formal nada deixava adivinhar, já as ideias expressas pareciam anunciar duas linhas fortes, presentes logo no título do seu primeiro livro, saído em 1945, “Serra Mãe” – a da Arrábida (a serra) e a da maternidade.
A segunda narrativa está documentada por escrito. Em Maio de 1944, o poeta Ruy Cinatti (1915-1986), em dedicatória para o poeta azeitonense no livro “Nós não somos deste mundo” (datado de 1941), exarava a seguinte profecia: “Ao jovem sucessor do Frei Agostinho, Sebastião da Gama, afectuosamente”. Ora, o primeiro livro de Sebastião só teria encontro com os leitores em 1945; por outro lado, a presença do arrábido Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) na poesia de Sebastião viria a ser forte e abriria logo o seu primeiro livro numa epígrafe; por outro lado ainda, a imagem poética da Arrábida tem já tradição na literatura portuguesa e é possível que os seus mais lídimos representantes sejam, de facto, Frei Agostinho e Sebastião da Gama.
Será o livro “Serra Mãe”, publicado em 1945, que vai firmar a ligação entre Sebastião da Gama e a Arrábida. Diga-se, contudo, que houve mais do que um “Serra Mãe” na ideia do seu autor. De 1943 é um conjunto de 34 poemas a que apôs tal título; no entanto, nenhum deles foi integrado no livro que conhecemos como “Serra Mãe” e, dos 34, apenas seis foram publicados por Sebastião da Gama em jornais – três, no montijense “Gazeta do Sul”; dois, na revista “Turismo”; um, no periódico “O Castelovidense”.
No poema “Serra Mãe” (escrito em 8 de Fevereiro de 1943), que tem o título homónimo do livro, o poeta faz a fusão da serra com a poesia, numa explosão de sentidos: “Na noite calma,/a poesia da Serra adormecida/vem recolher-se em mim./E o combate magnífico da Cor,/que eu vi de dia;/e o casamento do cheiro a maresia/com o perfume agreste do alecrim;/e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol castiga/passam a dar-se em mim.”
Sebastião da Gama vivia as suas convicções, sobretudo se elas lhe chegavam através da poesia, como era o caso desta sua relação com a Arrábida, levada ao limite, quando, numa carta à sua amiga Maria dos Remédios Castelo-Branco, lhe dizia, a propósito do tratamento académico que lhe era dado por causa da licenciatura em Românicas: “Doutor. É cómico, sabes? O que me interessa na vida, o que, a meus olhos, me dá importância social e individual, aquilo, ainda, por que tudo sacrificaria – é isto de ser Poeta. A minha licenciatura foi a ‘Serra-Mãe’.”
Pelas malhas da poesia, a Arrábida tem um lugar incontornável na paisagem literária portuguesa. E Sebastião da Gama foi um dos responsáveis por essa vertente. “Serra Mãe” é epíteto absolutamente adequado.
João Reis Ribeiro