Sebastião da Gama: Não foi pelo sonho, mas pela curiosidade

Não foi pelo sonho, mas pela curiosidade que fui. Peguei no carro, na mulher e nos miúdos e rumei até Estremoz para ver o que viram os olhos do poeta. E não me ocorreu melhor data para o fazer que o dia 10 de abril em que comemorámos os seus 98 anos de nascimento de Sebastião da Gama. Até porque, queiramos ou não, Estremoz foi para si uma terra de descobertas, conforme está patente nas suas Cartas de Estremoz (assim como em outra correspondência); queiramos ou não, Sebastião da Gama foi também Poeta de Estremoz (tendo aí escrito poemas famosos como são “Janelas de Estremoz”, “Viesses Tu, Poesia…”, “A uma Rapariga”, “Cantiga de Amor”, Largo do Espírito Santo, 2, 2.º” e “Crepuscular”).


Sebastião da Gama chegou a Estremoz em Janeiro de 1951. Solteiro (apenas casaria em Maio próximo), alojou-se perto da Escola Industrial e Comercial, onde iria leccionar, numa “casa particular de duas encantadoras e carinhosas senhoras – mãe e filha […] onde encontrara o local humano certo, arejado de ternura e cuidados” – conforme nos conta Joaquim Vermelho, amigo comum das proprietárias e do nosso poeta, que nos revela que não se sabe como Sebastião as descobriu e conheceu.


Um lamento revela, porém, que se encontrava alojado num aposento semi-interior (“da janela do meu quarto (que não dá para a paisagem)”), sem vista para a paisagem de Estremoz. E a paisagem (sempre) assumiu uma importância grande para Sebastião. É aí, logo em Janeiro de 1951 que se afirma paisagista. E foi aí que a paisagem revelou ao poeta uma novidade até então por si desconhecida: “Graças à Literatura, cheguei aos 26 empanturrado com esta noção do Alentejo: uma longa planície desolada e aspérrima, depois das ceifas; antes das ceifas, um mar de trigo sem uma ilha. Mas é mentira, meus senhores. Ou é verdade apenas em parte […] Sou de Estremoz e dos seus arredores – e aqui é verde e alegre. Este é um Alentejo de flores e pássaros, de colinas e fontes, de cantigas gárrulas no ar. […] para encher os olhos de verde basta a cada um debruçar-se da sua janela. Ou se quer mais largueza, subir à Torre de Menagem – o mirante de Estremoz, seu emblema. São marés vivas de Oliveiras e são trigos e são azinheiras e são, mais perto e mais verdes, as hortas”.


Essa paisagem foi ainda consolo para as muitas saudades da sua Arrábida: “o campanário de Estremoz e o seu mirante, de onde os olhos se admiram para os olivais sem fim, para o verde que te quero verde dos trigos, para as searas onduladas – engano azul para a minha saudade do mar”.


E nessa mesma paisagem encontrou também uma nova Arrábida: a Serra d’Ossa. Escreve Sebastião, “Era um nome no mapa… […] Mas o Carmelo, mas o Vermelho, mas o Aníbal falavam da Serra d’Ossa com o mesmo entusiasmo com que eu lhes falava da Arrábida”. E numa carta a Matilde Rosa Araújo confessa: “Aqui ao pé é a Serra de Ossa – um encanto. Passei lá agora pela terceira vez”.


Mas Estremoz não foi apenas o lugar onde Sebastião conheceu, de facto, o Alentejo – até então apenas uma idealização. Estremoz foi para si a terra onde o Rossio “poderia tratar por tu o de Lisboa”; onde o Carnaval revelava as lindas raparigas da terra e nos lembrava que “Às vezes talvez não valha a pena ser valente”; onde o Entrudo enchia as montras das lojas, inclusivamente, das funerárias; foi o lugar onde nunca se conseguiu sentir totalmente sozinho, antes sentindo aconchego e ternura em toda a parte. Mas mais do que isto, Estremoz foi um lugar de dupla importância: foi o “o seu primeiro e derradeiro ninho de amor”, como escreveu Joaquim Vermelho; e foi o lugar onde o Sábado era o seu Domingo.


“Se me querem ver contente, é darem-me um Sábado em Estremoz.”, escreve Sebastião. E mais adiante afirma “O sábado de Estremoz é o meu domingo de Estremoz.”. A razão desta alegria é que ao Sábado há mercado. “A praça enfeitada, a praça contente. […] Até há sol quando não há sol”. E na natureza social de Sebastião da Gama, o mercado era sinónimo de festa e de animação: nesse Alentejo hospitaleiro, Sebastião ia saudando todos, “gente simples como ele” como escrevia Joaquim Vermelho, enchendo a boina de violetas que distribuía pelos amigos que ia encontrando. “É que não há, nas cinco partes do Mundo, violetas que valham estas”.


Desses dias de mercado, destaco um episódio relatado a Matilde Rosa Araújo: “Hoje logo pela manhã uma coisa de nada cheia de ternura: no lugar do mercado onde se vende loiça de barro, um prato (não é bem um prato: é fundo e ondulado na beira) com este nome no fundo: MATILDES ROSA! Ó Matilde: o que nós rimos e nos comovemos ao mesmo tempo! Matildes Rosa! Que lindo vai no “seu erro de ortografia” – diria o António Nobre. Comprámo-lo, está à tua espera.”


Por fim, Estremoz foi o ninho de Sebastião e Joana Luísa. É ele que o diz à sua amiga Matilde: “Ficámos em Évora até Domingo ao meio-dia e abalámos para o ninho na automotora.”. O ninho tinha morada e deu título a um poema: Largo do Espírito Santo, N.º 2, 2.º. Um Largo a que Sebastião se refere como sendo o de lindo nome e onde se manifesta realizado: “Felizes. Entrefelizes às vezes. Mas com uma certeza tão grande no que pode o Amor e no que pode a Fé!”. Esta foi a primeira morada de casados de Sebastião e Joana Luísa. E nesse Maio de 1951, demonstrando que Sebastião não passou indiferente por aquela terra que chamou sua (“Forasteiro? Qual forasteiro! Não sei ser forasteiro nem hóspede.”), é surpreendido ao regressar da sua lua-de-mel, quando, ao entrar em casa, a vê convertida num jardim de flores por algumas das suas alunas. Do mesmo modo, ao serão, os amigos surpreenderam os esposos com uma serenata, tendo o poeta, terminada a cantoria, brindado os cantores com uma garrafa de moscatel de setúbal que fez descer por um cordel.


É por isso compreensível que Sebastião tenha baptizado esta terra como o seu Estremozinho, não pelo seu tamanho, mas pela ternura com que a terra o recebera e que ele retribuiu.


E é por isso que eu quis ir a Estremoz no dia dos seus 98 anos. Não só porque se torna impossível compreender a sua obra sem visitar Estremoz, mas porque também Estremoz estava no seu coração, guardando, ainda hoje, um pouco do Sebastião que queremos manter vivo.

Lourenço de Morais, presidente da Associação Cultural Sebastião da Gama