Sebastião da Gama e o fascínio de Paris (parte II)

Se o texto literário sobre esta viagem de Sebastião da Gama acompanhou o itinerário apenas até Bordéus, certo é que, ainda pela escrita, o jovem azeitonense legou reportagem das jornadas que seguiram nesta visita que tinha Paris como destino: a opção foi para uma mistura de géneros, entre o epistolar e o diarístico, nas cartas que, para a namorada, Joana Luísa, iam sendo escritas ao ritmo do diário, ainda que não enviadas à velocidade do correio. É assim que a narração da viagem ganha em emoção, seja pela descoberta, pela distância, pelos cenários vistos ou pela idealização dos momentos, fortemente marcados pela saudade da namorada ou do espaço arrábido onde Sebastião se sentia feliz. 

A partir de Bordéus (local de onde envia um lacónico telegrama a Joana Luísa, recebido em 3 de Agosto, terça, dizendo: “Maravilhado Chego Paris talvez sexta, saudades”), o trajecto de Sebastião da Gama e seus companheiros de viagem, até à chegada à capital francesa, seguiu por Nantes, Avranches, Caen, Rouen, Dieppe, Abbeville e Amiens, pontos de que foi dando notícia.

Em 5 de Agosto, escreve de Caen, relatando: “Estou numa cidade que ainda não vi, mas sei que está quase completamente arrasada. Uns quilómetros antes, de uma povoação maior que Vila Nogueira só restam quatro ou cinco casas.” Sebastião da Gama confrontava-se, não só com a maravilha, mas também com as consequências do que fora a 2ª Grande Guerra, terminada havia três anos. O seu fascínio vai para a arte religiosa e para as descobertas: “Tu não podes fazer ideia da grandeza destas igrejas. São de uma beleza impressionante e só em Nantes há quatro, todas com vitrais lindíssimos. Às seis, já há missa e gente a ouvi-la. Em todas as igrejas um Santo António que, segundo vi, é muito adorado cá. E ontem, em S. Clément, Nantes, vi um já velho, de barbas, com um bordão e um livro vermelho na mão esquerda.” A paragem seguinte será Rouen, de onde regista num postal da cidade: “Aqui vai Rouen, com a sua catedral que fura o Céu”. A ideia é ainda aproveitada para uma declaração amorosa: “Aqui vai, alto como a torre de Rouen, o nosso amor.” Mesmo no dia da chegada a Paris, em 6 de Agosto, Rouen continua a dominar a sensibilidade de Sebastião da Gama: “A França até espiritualmente me alevantou. Este país ergueu catedrais que me alevantaram nas suas torres até ao Céu. Ah!, meu Bem, se tu visses a catedral de Rouen! Parece que a torre, esguia como um fuso, quer furar o céu. Sente-se a gente pequeno e sente Deus a mandar tudo.”

 Chegado a Paris, num registo do que foi a última etapa, não esquece de dar as tonalidades que a Natureza conferia à paisagem (um aspecto que Sebastião nunca descurará), referindo que o trajecto de Dieppe a Abbeville “foi encantador. Verde, verde, verde. A certa altura, a estrada fechava-se de árvores de um e outro lado e a luz era verde também.”

O Louvre seria visitado logo no dia da chegada, a 6, numa das várias incursões que fará ao Museu. Depois, a passagem pelos Campos Elíseos e a contemplação do Arco de Triunfo e do túmulo do Soldado Desconhecido, onde a música (um dos traços, também, da sua poesia) o impressiona – “todas as tardes, um grupo de soldados da Grande Guerra (hoje eram ingleses) vai lá depor flores. Rufa um tambor, depois um clarim toca, segue-se um silêncio e novo rufo. É belo e edificante.” Mas o primeiro dia ficaria também marcado por alguma decepção relativamente à impressão deixada pelo amigo poeta André Figueras – parco em palavras, alguma apatia, marcas que Sebastião tenta apaziguar, pensando que no dia seguinte poderá mudar de opinião… Com efeito, logo em carta do segundo dia em Paris, corrige a opinião sobre o amigo: “Nós é que esperamos dos outros que eles sejam como nós, Portugueses; e eles são tão diferentes! Depois, lembra-te de que é um povo que sofreu muito.” A chamada de atenção parecia mais ser dirigida a si próprio do que à destinatária da missiva… No final do dia, em nova carta para a namorada, registava, aproximando-se do que sentia o amigo: “O caso do André está explicado: está à espera de uma carta da noiva e a carta não vem. Parece tu. Parece eu, ou quase, que esperava agora ter carta tua e não tenho. Estou impaciente por saber se recebeste as minhas palavras.”

Nesse segundo dia parisiense, visita Notre-Dame (que não o comove tanto quanto seria de esperar, pois continuava impressionado com a catedral de Rouen), passeia na margem do Sena em visita aos alfarrabistas (onde compra livros), revisita o Louvre e sobe à torre Eiffel. Sugestionado pelos gastos, pede a Joana Luísa: “diz a essa gente que eu não posso levar lembranças – a menos que não compre postais, nem livros, nem veja museus (tenho de ir umas oito ou dez vezes ao Louvre, que é enorme).” O dia ficaria completo com um encontro com o poeta e crítico literário Fernand Gregh (1873-1960), “tão simpático como belos os seus versos”, proporcionado pelo amigo André Figueras.

 O quarto dia da estada em Paris, uma segunda-feira, começou para Sebastião da Gama com nova carta escrita a Joana Luísa, fazendo uma reflexão sobre o sofrimento que assolara a França durante a guerra e sobre a capacidade de reconstrução do país: “este povo sofreu terrivelmente enquanto nós dormíamos a sesta. Nós talvez não soubéssemos, como eles, cantar e trabalhar entre escombros de cidades.” Depois, conta o ocorrido com uma amiga de André Figueras: “A Francine, de quem o André fala no primeiro livro, foi levada para a Polónia e queimada lá. O meu almoço ontem foi um arrepio de alma porque lhe perguntei por ela.” Depois, em jeito de diário, Sebastião relata o seu domingo: visita a Fontainebleau e a Barbizon, uma “aldeia de França verdadeiramente bela para onde vão pintores de todo o mundo”.

Mais umas horas no Louvre e o Museu Rodin (“das mais fortes impressões que levarei de aqui”) constituíram o roteiro dessa segunda-feira. A visita às esculturas de Rodin foi feita na companhia de Matilde Rosa Araújo (1921-2010), que estava em Paris já desde 11 de Julho a frequentar um curso para estrangeiros na Sorbonne com outros amigos de Sebastião da Gama: Maria de Lourdes Belchior (1923-1999), Maria Teresa Meneses, António Coimbra Martins (n. 1927), Eugénio Cardigos e David Mourão-Ferreira (1927-1996).

Será no dia seguinte, em que os museus estavam fechados, que Sebastião vai passear até ao Bois de Boulogne, numa busca de espaço verde, que merece o seguinte comentário em carta desse mesmo dia (10 de Agosto): “Parece mentira que o exemplo dos Franceses não leve quem manda no turismo da nossa terra a velar pelas árvores. Sabes os tristes acontecimentos da Arrábida. Pois aqui, onde a lenha deve ser ainda mais necessária, o que mais encontramos são parques e florestas de um encanto enorme, como este Bois de Boulogne que tem léguas e léguas.” As referências à Arrábida e à saudade da sua paisagem perpassam ao longo de muitos dos vinte registos de viagem que Sebastião endereçou a Joana Luísa e o comentário perante o arvoredo do bosque dos arredores parisienses não pode ser desligado da acção que o poeta tivera um ano antes, pedindo a várias individualidades a defesa da Mata do Solitário e a condenação de quem andava a destruir a vegetação daquele espaço arrábido para lenha…

O dia fora-lhe ainda comovente por ter conseguido concluir a aquisição da obra de Verlaine em sete volumes e porque foi ao cinema ver o “Bambi”, fita que deixou Sebastião da Gama entusiasmado de forma a, ternurento, enviar mensagem nos dias seguintes à namorada em dois postais de desenhos animados, prometendo num deles: “A primeira escola dos nossos filhos serão os filmes de Walt Disney – a escola de Poetas mais perfeita que jamais vi.”

João Reis Ribeiro  (continua)