Sebastião da Gama e José Régio, o elogio da sinceridade

João Reis Ribeiro

Em 7 de Fevereiro de 1946, Sebastião da Gama estava no Portinho da Arrábida e dali escrevia uma carta para José Régio (1901-1969), na altura escritor já consagrado, com vastíssima obra publicada, de que são exemplos “Poemas de Deus e do Diabo” (1925), “Biografia” (1929), “Jogo da cabra cega” (1934), “As Encruzilhadas de Deus” (1935), “Fado” (1941), “O Príncipe com orelhas de burro” (1942) e “Mas Deus é grande” (1945), entre outros títulos.

Arrábida

Tratando Régio como “grande Camarada”, Sebastião apresentava-se, acentuando sobretudo o seu papel de leitor e de iniciado na poesia: “Eu sou um rapaz de vinte e um anos que se habituou a olhá-lo com uma admiração misturada de carinho. Foi em 1942 que me vieram às mãos, pela primeira vez, versos seus – o ‘Fado’; depois li as ‘Encruzilhadas’ e todos os outros seus livros até ao ‘Príncipe com orelhas de burro’ – e os seus livros foram para o pé de aqueles que me são mais queridos. Passei a contar aos seus versos os meus desgostos ou as minhas alegrias, com a mesma sinceridade com que eles me contam os seus; e como também fazia meu poemazito, parece que muito fui aprendendo consigo.” Adiante, registava o motivo da carta: em 18 de Dezembro anterior, enviara a Régio um exemplar da obra “Serra Mãe”, acabada de sair dos prelos, justificando que pretendia que essa obra fosse a “homenagem, pobrezinha embora, ao Poeta do meu tempo que mais admiro e a quem mais quero”. E, a finalizar, lembrando que sabia que o seu destinatário teria muitos afazeres, o que talvez desculpasse o não ter acusado a recepção da obra, o jovem azeitonense pedia: “é tão grande o interesse em que leia os meus versos e me diga, sem receio de melindrar-me se lhe não agradarem, o que pensa deles que me atrevi a vir pedir-lhe isso mesmo, contando com a sua benevolência.”

Sebastião da Gama

Doze dias depois, a partir de Portalegre, José Régio enviava carta a Sebastião da Gama justificando o seu silêncio com o trabalho e estabelecendo ponte com o jovem: “Também publiquei o meu primeiro livro quando tinha vinte e tantos anos; também sei como pode magoar o silêncio de alguém a quem se enviou esse primeiro livro com um misto de alvoroço, expectativa, receio… (…) Sei como deve ser delicada a conduta para com esses, que estão numa idade tão propensa a tanta coisa de bom e a tanta coisa de mau.” Mais adiante, prometia: “Só agora vou ler o seu livro, que tenho aqui na minha mesa de trabalho, com outros de que, não sei bem porquê (talvez pela sinceridade que respira a sua carta), já o distingo.” Régio tocava, nesta curta observação, num aspecto crucial para a escrita de Sebastião da Gama – a sinceridade, factor que assinalou ainda noutras ocasiões e que Eugénio Lisboa sublinhou em conferência há uns anos em Setúbal: “A poesia de Sebastião da Gama admira-se, mas, o que é ainda mais importante, fica-se profundamente amigo dela. E ficamos amigos dela porque ela é, por sua vez, genuinamente amiga de tudo quanto, na vida, importa.”

O que Sebastião da Gama confessou a Régio nessa missiva de 7 de Fevereiro de 1946 relativamente à admiração que por ele tinha não foi invenção de conveniência. Dois anos antes, em 3 de Março de 1944, ao escrever à namorada Joana Luísa, transcrevia excertos do poema “Alegria” da obra “As Encruzilhadas de Deus”, comentando a sua identificação com o teor dos versos, sobretudo na parte em que a exclamativa agudiza o sentimento: “Ah! Que não me atrevo a dizer / que sou desgraçado!”. No final do comentário, uma recomendação à destinatária, com algum humor (ou num gesto amoroso) à mistura: “Gostaria bastante que tu lesses o José Régio; vê se arranjas maneira disso, porque ele te ensinará muitas coisas e já tenho saudades de arejares a minha ‘biblioteca’ além disso.” Régio foi, aliás, uma referência em várias cartas de Sebastião da Gama para Joana Luísa nesse 1944: ora como outra voz que por ele falava, ora transcrevendo um poema regiano, ora invocando alguns versos para justificar o seu estado de emoção.

O relacionamento epistolar, literário e amistoso entre os dois poetas prosseguiu, tendo chegado a haver encontro presencial em Lisboa, na deslocação de Régio à capital aquando da estreia da peça “Benilde” (1947). Sebastião fez também chegar a Portalegre o seu segundo livro, “Cabo da Boa Esperança” (1947), sobre o qual Régio lhe escreveria em 6 de Fevereiro de 1948: “recebi o seu Livro, reconheci nele uma voz de Poeta.” E acrescentava, relembrando o encontro dos dois: “Você disse-me poucas coisas, porque estivemos juntos pouco tempo, quando nos encontrámos em Lisboa. Mas algumas que me disse, e o tom e a expressão com que mas disse… quase me comoveram.”

A ligação a Régio não a escondeu Sebastião da Gama dos seus alunos. No “Diário” do seu tempo de estágio (1948-1949), regista, entre as muitas referências a autores sobre os quais falou aos jovens, o nome de José Régio. Por outro lado, as leituras de Régio continuarão, atestadas pela biblioteca que Sebastião construiu, detentora de diversos títulos por ele autografados, alguns acompanhados de dedicatória, como, por exemplo, na obra de teatro “El-Rei Sebastião” (1949): “A Sebastião da Gama, com afectuosa camaradagem do José Régio, esta história dum seu homónimo, Portalegre, 1949”.

A opinião regiana sobre Sebastião da Gama foi lida pelo autor de “Serra Mãe” numa carta datada de 11 de Maio de 1950, escrita em Portalegre: “Perguntaram-me, há tempos, o que pensava dos seus Livros. Eu disse: ‘Estou à espera.’ Expliquei depois, e também lho quero explicar, que esperava o Livro em que o Sebastião da Gama concentrasse todas as suas possibilidades de criação poética, e lhes desse forma tanto quanto possível original e perfeita. Virá, ou não virá, esse Livro, ou aquele que mais se aproxime desse Livro ideal? Não sei. Como quer que seja, nos seus livros se reconhece iniludivelmente um Poeta. Com profundo prazer me detenho naquelas notas íntimas, naqueles versos densos de sugestões, através dos quais a autenticidade dum Poeta se revela.” A seguir, Régio agradecia umas fotografias da Arrábida que Sebastião lhe tinha enviado: “E qualquer dia – só não sei quando! – lá me terá a ver a sua Arrábida! Achei, de facto, convincentes os testemunhos que me enviou, e diante dos quais me deixei sonhar um pouco… Feliz homem, feliz poeta é o meu Amigo, que vive aí no meio da beleza e da grandeza que essas fotografias me fazem adivinhar!”

Sebastião da Gama, José Régio e Cristovam Pavia – Encontro em Portalegre em 25.02.1951

Na sua oitava edição, de 1 de Novembro de 1950, a revista “Távola Redonda” (1950-1954), dirigida por David Mourão-Ferreira (1927-1996), António Manuel Couto Viana (1923-2010) e Luiz de Macedo (pseudónimo de Luís Chaves de Oliveira, 1901-1971), a que Sebastião da Gama estava fortemente ligado como colaborador e divulgador, destacou o poeta José Régio com os artigos “Sobre ‘Poemas de Deus e do Diabo’”, assinado por Adolfo Casais Monteiro, e “Os ‘Poemas de Deus e do Diabo’ à distância de 25 anos”, subscrito por David Mourão Ferreira. Integrava a revista ainda um fac-símile de um poema regiano da obra celebrada e poemas de vários colaboradores, entre os quais “Alegoria”, de Sebastião da Gama. O poeta azeitonense pertencia a este grupo da “Távola”, quer pelas amizades que ali tinha, quer pela ideia de poesia que a revista defendia – o lirismo, sobretudo, e a tradição literária portuguesa, princípios que pareciam pretender romper com a onda neo-realista que povoara a poesia portuguesa. Este número da revista agradou a Régio, que, em 28 de Novembro, escreveu no diário: “Os rapazes da ‘Távola Redonda’ festejaram o 25º aniversário do aparecimento dos ‘Poemas de Deus e do Diabo’ com um simpático número. (…) Estas pequenas notícias lisonjeiras para um autor não chegam a compensar o profundo desconsolo em que venho vivendo a maior parte dos meus dias.” Régio via neste grupo de jovens poetas, além de uma grande promessa, um círculo de amigos – com vários deles (Sebastião incluído) se encontrara em Lisboa, no final de 1947, aquando da estreia da sua peça “Benilde” e a admiração mútua foi crescendo.

            Quando Sebastião da Gama publicou o seu terceiro livro, “Campo Aberto”, em 16 de Fevereiro de 1951, registou na dedicatória que o abre os nomes de Virgílio Couto (1901-1972, professor metodólogo que o acompanhou no estágio na Escola Veiga Beirão) e de José Régio. Uns dias depois, a 25, o poeta de Azeitão rumava a Portalegre, na companhia do seu amigo Cristovam Pavia (1933-1968), para oferecer a Régio um exemplar da obra que lhe era dedicada. A reacção não se fez esperar e de Portalegre veio o comentário por carta com algumas observações por causa dos versos longos. Sebastião reagiu e Régio, em 8 de Abril de 1951, escrevia-lhe para de novo falar sobre esta obra: “Receio que tenha dado mais importância aos meus leves reparos do que à impressão de conjunto (e essa foi muito boa, como lhe disse) que me deixou o seu Livro. Repito que gostei muito dele. (…) Sem dúvida, algumas das poesias que no seu Livro mais me encantaram são em versos curtos.” Na mesma carta, a tónica da sinceridade era, uma vez mais, aflorada: “Quanto à sua sinceridade, de modo nenhum duvido dela. Basta vê-lo, meu Amigo, e ouvi-lo, para se ter a certeza de tal sinceridade. ‘Eis o que é um Poeta!’, tenho eu pensado só de ouvi-lo.”

            O estado de saúde de Sebastião da Gama foi-se deteriorando, com o avanço da doença a vitimá-lo em 7 de Fevereiro de 1952, exactamente seis anos depois da carta que Sebastião escrevera para Régio a apresentar-se como um “rapaz de vinte e um anos” que o apreciava e fazia o “seu” poema e a confessar que aprendera com ele as sendas da poesia. Foi através da revista “Távola Redonda” que Régio exprimiu o seu pensamento sobre Sebastião da Gama, na dupla edição saída em 30 de Abril de 1953 com os números 17/18, que se apresentou como homenagem ao jovem poeta azeitonense. Por esse número passaram ainda os testemunhos de Hernâni Cidade (que fora professor de Sebastião, 1887-1975), de Matilde Rosa Araújo (1921-2010) e de David Mourão-Ferreira, além dos poemas que lhe foram dedicados por Júlio Evangelista (1927-2005), António Manuel Couto Viana, Miguel de Castro (pseudónimo de Jasmim Rodrigues da Silva, 1925-2009), Fernando Guedes (1929-2016), Luiz de Macedo, Cristovam Pavia, David Mourão-Ferreira, Artur Ribeiro, Fausto Denis, Leonor de Castilho e João Sant’iago (1918-2014).

            No seu testemunho, Régio impressiona-se, insistindo no aspecto da sensibilidade poética de Sebastião e na descoberta de que aquele jovem poeta andava, havia muito tempo, com a vida ameaçada pela falta de saúde. “Quando pude conhecer pessoalmente Sebastião da Gama, pensei encantado: ‘Louvado seja Deus! Ora aqui está um Poeta! Um novo Poeta!’ E essa primeira e rejuvenescedora impressão, nunca os meus encontros seguintes com Sebastião da Gama a desmentiram.” Mas o que descobrira Régio que ainda não tivesse ouvido de outros? “É que não tanto das suas palavras, como de todo ele vinha essa impressão de juvenilidade e frescura, gentileza e comunicabilidade, entusiasmo e pureza, que me fazia pensar, ou mais sentir que pensar: ‘Não há dúvida! Eis um verdadeiro Poeta!’ E de cada vez me achava eu como animado, e agradecido, pelo simples facto de existir, nestes velhos e demasiado sabidos tempos de hoje, um rapaz assim tão naturalmente protegido pela sublime ingenuidade poética de sempre.” Surpreendido pelo infausto acontecimento, Régio recorda-se de a situação da doença de Sebastião ter vindo uma vez à conversa, mas sem que um e outro lhe tivessem dado demasiada importância e sem que o destinatário de Portalegre se tivesse apercebido do quão grave era a situação – “mal sonhava, então, pois bem pouco sabia da sua vida particular, que já sobre essa cabeça juvenil pairava a asa da Morte”, lamenta. As próprias temáticas e formas de dizer do poeta azeitonense não deixaram ao seu amigo espaço para desconfiar – “nos seus versos havia, tantas vezes, tão espontânea alacridade, uma graça tão matinal, tão amorosa esperança na vida, que os seus poemas de cansaço, dúvida ou desânimo se me esfumavam na memória. Sobretudo me aparecia o Poeta como dos nossos líricos menos doentios, como dos mais saudáveis e juvenis, até quando melancólico ou elegíaco.”

            Escritor, crítico e leitor experiente, Régio retira ainda exemplo de aprendizagem da leitura de Sebastião da Gama, ao revelar, quase no final do seu texto: “Compreendo agora como certa gravidade que em vários seus poemas tão admiravelmente ombreia com a graça, a frescura, a juvenilidade, até a malícia, quer dos mesmos quer dos poemas vizinhos, era ganhada na convivência da Morte: essa Morte à qual, num dos mais tocantes e complexos gritos do nosso lirismo, ele pede a Deus que o poupe, por ainda se não julgar digno dela!” E, a acabar, honra Sebastião com o título de “verdadeiro poeta”: “Só tal convivência, que é a dos que vão morrer, ou pressentem morrer cedo, ou vivem mortos para as superfluidades da vida corrente, só tal convivência ensina coisas que também só a verdadeira Poesia comunica.”

            Em 15 de Junho de 1953, pouco mais de um ano após o falecimento de Sebastião da Gama, a cidade de Estremoz resolveu homenageá-lo através da colocação de uma lápide na casa onde vivera e com uma sessão cultural no Teatro Bernardim Ribeiro, em que intervieram Hernâni Cidade e Vasco de Lima Couto (1923-1980). A comissão responsável pela homenagem integrava Maria Guiomar Ávila (1919-1992), estremocense que Sebastião conhecera através de um poema publicado num jornal, que convidou José Régio para participar na sessão. Cerca de uma semana antes do evento, em 7 de Junho, Régio escreveu a Guiomar Ávila uma carta de cinco páginas informando sobre a sua impossibilidade de estar presente, ao mesmo tempo que se desgostava por essa ausência – “bem poucas vezes, como desta, lamentei que as particularidades da minha vida e do meu feitio me tolhessem o prestar publicamente a um Poeta, publicamente e de viva voz, o preito da minha admiração, do meu respeito, da minha ternura, da minha camaradagem. (…) Digo-o com o coração nas mãos.” Depois, em longo parágrafo, dava o seu testemunho sobre o homenageado: “Em Sebastião da Gama – o poeta, o amigo, o professor, o homem, eram uma e só personalidade, uma luminosa personalidade como poucas, muito poucas, aparecem nestes secos ou turvos tempos de hoje.” Esta junção de várias facetas numa só personalidade, explica-as o autor de “Benilde ou a Virgem Mãe” pela marca da sinceridade e da fidelidade, ao dizer do amigo que foi um “verdadeiro Poeta que viveu modesto, e só grande, só poderoso, na fidelidade ao seu destino poético e humano”. E, a fechar a carta, depois de parabenizar a comissão responsável, relembra a dedicatória do autor de “Campo Aberto”, obra que lhe ofertou: “[conservo] de Ele, no Livro que em parte me dedicou, palavras que são um incentivo e um prémio válidos para o resto dos meus dias.” As palavras de Régio são fulgurantes, enaltecendo o jovem amigo e assumindo para si a humildade de alguém que conseguia descobrir o esplendor da amizade e o valor da poesia, aprendendo e deixando-se incentivar pela via da sinceridade.

            O escritor vila-condense radicado em Portalegre participaria, anos mais tarde, no suplemento literário do “Jornal de Almada”, que, na edição de 5 de Fevereiro de 1961, homenageava Sebastião da Gama. Em curto poema, que trazia o amigo para título, Régio escreveu: “No começo da vida, / No começo dum lar, / No começo da Obra singular / A mais do que o já feito prometida, / – Não me chames, que ainda não sou digno! – sugeria / A transcendente queixa / Do moribundo lábio que sorria, / E a morte é que o não deixa, / Pois Deus é que sabia.” Os anos tinham passado, mas o sentir de Régio mantinha-se igual. E Deus surgia como a entidade omnisciente que tanto povoou a obra dos dois poetas…