Albérico Afonso lança “Setúbal sob Estado Novo – a resistência a Salazar”: “Quem não conhece o passado não pode estar alerta para o futuro”

Albérico Afonso vai lançar o livro “Setúbal sob Estado Novo – a resistência a Salazar”, no seguimento da última fase do projeto de investigação sobre a história da cidade de Setúbal, iniciado em 2009 no âmbito das suas atividades como docente do ensino superior e investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Este primeiro livro abarca o período compreendido entre 1933 e o fim da guerra, com a campanha eleitoral de Norton de Matos. A obra, que conta com fotografias de Américo Ribeiro, estará brevemente à venda nas livrarias de Setúbal.


Florindo Cardoso

Setúbal Mais – Como surgiu a ideia de escrever este livro “Setúbal sob Estado Novo – a resistência a Salazar”?
Albérico Afonso
– Este livro integra a última fase do projeto de investigação sobre a História da cidade de Setúbal, que iniciei em 2009 no âmbito das minhas atividades como docente do ensino superior e como como investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Esta investigação originou já a publicação de quatro obras: “Setúbal, Roteiros Republicanos”, editora QuidNovi, Lisboa, 2010. A coordenação deste livro resultou de um pedido que me foi formulado pela Comissão Nacional para as comemorações do Centenário da República; (esgotado); “História e Cronologia de Setúbal (1248-1926)”, edição Estuário/Instituto Politécnico de Setúbal, Setúbal, 2011; (esgotado); “Setúbal Sob a Ditadura Militar (1926-1933)”, edição Estuário/Instituto Politécnico de Setúbal/Câmara Municipal de Setúbal, Setúbal, 2014; “Setúbal, Cidade vermelha (1974-1975)”. Neste ciclo de investigações faltava estudar o período correspondente ao Estado Novo (1933-1974). Com esta publicação pretendemos cumprir esse objetivo.

S.M. – Resulta de um trabalho de investigação de quatro anos. Como conseguiu reunir os documentos para este livro?
A.A.
– A documentação consultada/utilizada é proveniente de vários arquivos nacionais e regionais. Destaco os mais importantes. Na Torre do Tombo: o arquivo da PIDE/DGS; o arquivo da Legião Portuguesa; o arquivo Geral do Ministério do Interior – Gabinete do Ministro; o arquivo de António Oliveira Salazar; os cadastros da Polícia de Defesa Política e Social e ainda a consulta do Registo Geral de Presos, que é uma base de dados referente a todos os presos políticos detidos entre 1933 e 1974. No Arquivo Histórico Militar consultei os processos individuais dos presos setubalenses julgados pelo Tribunal Militar Especial. Na Biblioteca Nacional, para além da consulta dos jornais mais importantes, consultei o Arquivo Histórico e Social. No Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Setúbal consultei as atas das sessões da Câmara Municipal de Setúbal referentes ao período estudado. No Arquivo Distrital de Setúbal: os espólios do administrador do Concelho, do Ministério do Interior e do Ministério da Justiça. Na Hemeroteca da Biblioteca Pública Municipal de Setúbal consultei toda a imprensa local referente a este período. O Arquivo Américo Ribeiro foi fundamental para a parte iconográfica.
Ao nível da documentação utlizada beneficiei ainda da cedência de documentos provenientes das coleções particulares de António Cunha Bento, Carlos Mouro, João Madeira e Quaresma Rosa. O trabalho empírico exigiu, numa primeira fase, a consulta várias dezenas de milhares de documentos, sem os quais não é possível fazer/construir a história. No entanto, não podemos deixar de referir que tivemos algumas dificuldades no acesso às fontes. Para a escrita de alguns temas apenas pudemos contar com algumas fontes policiais, ou com documentos existentes nos processos judiciais, que estão sempre subordinados ao ângulo de visão das polícias, em especial da polícia política.
S.M. – A capa é bastante simbólica com a fotografia de Américo Ribeiro. Apesar de ser conhecida, esta foto nunca foi muito divulgada junto da opinião pública. Considera que ainda é um tabu falar neste tema em Setúbal, nomeadamente em relação às fábricas conserveiras?
A.A. –
A fotografia da capa é uma de várias fotografias de uma reportagem feita pelo Américo Ribeiro aquando da visita de uma delegação nazi Kraft durch Freude (Força pela Alegria) a convite do industrial conserveiro José Viegas. Que eu tenha conhecimento, esta foto utilizada na capa, nunca tinha sido divulgada. Foi já publicada uma outra, tirada no mesmo evento mas que mostra um ângulo diferente. No livro divulgarei todas as fotos tirados por Américo Ribeiro neste evento. Este período da História setubalense é de facto muito pouco conhecido. Espero que esta primeira investigação proporcione uma melhor compreensão de uma época tão marcante da História nacional e também da nossa cidade.

S.M. – Refere volume I – 1933/49. É sua intenção continuar com esta investigação?
A.A
. – Como explico na introdução, a presente investigação será dividida em dois volumes, dada a dificuldade em condensar num único livro um texto cuja dimensão se tornaria pouco confortável para o leitor, dado que só este volume tem 438 páginas. Este primeiro livro abarca o período compreendido entre 1933 e o fim da guerra, com a campanha eleitoral de Norton de Matos, enquanto último sopro deste tempo intenso vivido pelas oposições no fim do segundo conflito mundial e que abalou o regime de um modo até aí desconhecido. Será, pois, analisado o tempo de consolidação do Estado Novo salazarista e o seu decurso, até 1949. O 2.º volume, a ser editado no próximo ano, tratará os últimos anos do salazarismo, com destaque para a campanha eleitoral de Delgado, cujas “ondas de choque” serão ainda sentidas na década de sessenta, nesta cidade depauperada pelo agravamento das condições económicas. O impacte de um novo processo de reindustrialização vivido em Setúbal e o papel das oposições na fase agónica do marcelismo integrarão os últimos temas a analisar.


S.M. – Setúbal sempre foi terra de resistência ao fascismo. Isso está presente neste livro?
A.A
. – A nossa análise centra-se fundamentalmente na perspetiva da história social e política. O nosso ângulo de observação incidiu sobre as oposições existentes, em Setúbal, em diferentes momentos no período estudado. Mas mais do que uma história da oposição, quisemos fazer uma história das oposições. Das diferentes oposições, umas mais conhecidas e marcantes, outras menos notórias e também menos perseguidas e, ainda outras, mais distantes no tempo, quase condenadas à inexistência dado silêncio que sobre elas caiu. E, no entanto, todas elas, com diferentes pesos, em diferentes momentos e com diferentes objetivos e visões, habitaram este país e particularmente esta cidade que com a sua carga idiossincrática se apresentava como um espaço peculiar. E todas elas olharam para o governo de Salazar como um regime cruel e injusto, esperando a hora sempre adiada da sua queda.

S.M. – Nos tempos de ressurgimento de movimentos de extrema-direita na Europa e também em Portugal, qual a importância deste livro para alertar a opinião pública para esta problemática?
A.A.
– A questão que coloca é muito importante. Estamos a viver um tempo singular. Na introdução refiro que há hoje uma espécie de brado neoconservador que tenta apagar ou naturalizar as violências e tragédias do passado para legitimar e normalizar as violências e tragédias do presente. Vivemos tempos de uma espécie de “Ditadura do Esquecimento”, mergulhados numa desmemória planificada e instrumental que omite, branqueia, silencia, desculpabiliza, para legitimar ideologicamente o nosso passado recente; que se exercita em linguagem tonitruante, maquilhando números, utilizando e manipulando a História e a (des)memória para validar o presente naquilo que ele tem de mais regressivo.
Quem não conhece o passado não pode estar alerta para o futuro. Quando hoje ouvimos a palavra de ordem salazarista “Deus, Pátria, Família e Trabalho” a ser retomada num comício de extrema-direita é o fascismo a insinuar-se de novo, numa tentativa de eterno retorno, como se não tivesse um vastíssimo património de morte, crime, repressão, exploração levada até aos limites, no seu passado; como se os anos do Estado Novo não tivessem sido um dos mais negros períodos da história do nosso país; como se ainda hoje não estivéssemos a pagar a fatura daquele longo período. Por isso o estudo desta época é tão importante quer a nível da história nacional quer a nível da história local.