Albérico Afonso lança livro “Setúbal Sob o Estado Novo (1950-1974) – A Resistência a Salazar e a Caetano, 2.º Vol”: “Setúbal ousou contestar a ditadura”

O historiador e professor Albérico Afonso lançou o livro “Setúbal Sob o Estado Novo (1950-1974) – A Resistência a Salazar e a Caetano, 2.º Vol”, onde aborda as campanhas eleitorais de Humberto Delgado às presidenciais de 1958 e à Assembleia Nacional, em 1969 e 1973, no distrito de Setúbal, bem como os confrontos entre a polícia e vários movimentos de oposição ao regime nos anos 70, o papel dos movimentos de contestação dos católicos sociais ao Estado Novo, um tema que ainda não tinha sido tratado e presta uma homenagem aos presos políticos que viveram e desenvolveram a sua atividade em Setúbal” e aqueles que, mesmo não tendo sido presos, constavam nos relatórios da PIDE/DGS. Para Albérico Afonso é “importante, que as novas gerações tenham conhecimento deste nosso passado recente para que não se repita” e também que a memória histórica e cultural desta cidade não se perca.

Florindo Cardoso

Setúbal Mais – Acaba de lançar o livro “Setúbal Sob o Estado Novo (1950-1974) – A Resistência a Salazar e a Caetano, 2.º Vol”, onde apresenta um trabalho de pesquisa histórica sobre a oposição dos setubalenses nos últimos anos do regime fascista. Pode revelar como foi feita essa luta do povo de Setúbal?

Albérico Afonso – Nos 48 anos de vida do Estado autoritário, em vários momentos, Setúbal ousou contestar a ditadura. Os mais desfavorecidos foram os que mais sentiram os efeitos da repressão ditatorial. Foram também estes que se mostraram, por várias vezes, os mais inconformados.

A oposição e a resistência setubalense ao regime de Salazar e Caetano assumiram formas diferenciadas. Como não existia liberdade de expressão, de reunião, de associação, como os partidos políticos estavam proibidos, grande parte da resistência era feita de forma clandestina. As reuniões dos membros mais ativos da oposição eram secretas, a imprensa era distribuída clandestinamente, sempre com imensos cuidados conspirativos para tentar fugir à vigilância da polícia política (PIDE/DGS). No entanto, havia uma atividade considerada legal ou semilegal. Era a que ocorria nas coletividades de cultura e recreio e que não aparecia diretamente conotada com a política.  Esta atividade cultural era mais tolerada pelo regime, apesar de alguns dirigentes destas coletividades terem sido presos. São exemplo disso a prisão de vários dirigentes do Clube de Campismo de Setúbal ou, já nos últimos anos do marcelismo (em 1973), a prisão de Jorge Luz (Presidente do Círculo Cultural de Setúbal), José Afonso e Teodósio Cachoças. A PIDE não hesitará prender estes ativistas.

A resistência fazia-se também através da convocação de greves que, apesar de estarem proibidas, ocorreram muitas vezes.  

Nos períodos eleitorais havia uma maior descompressão por parte do regime. Contudo, era precisamente estes períodos que a polícia aproveitava para prender os que mais se destacavam Em Setúbal houve sempre prisões por razões políticas durante as épocas eleitorais ou imediatamente após as eleições.

Em 28 de maio de 1962 ocorreu um dos momentos de maior inconformismo e de contestação nos últimos anos do Estado Novo. Centenas de jovens setubalenses, desafiando a repressão, saem à rua e, munidos de paus e pedras vão afrontar e enfrentar a polícia e o regime. Durante praticamente quatro horas, centenas de pessoas tomam conta da cidade, ostentando de forma violenta a sua oposição a Salazar, ao regime e às condições em que viviam. Mais de três dezenas destes jovens são presos e enviados para a PIDE de Lisboa.

Setúbal Mais – Neste volume foca sobretudo as eleições, nomeadamente as de Humberto Delgado. Qual o papel de Setúbal nesta grande afronta ao regime de Salazar?

Albérico Afonso – Como refere, a candidatura de Delgado foi uma afronta ao regime e provocou um autêntico “terramoto” na sociedade portuguesa.

No entanto, Setúbal esteve longe de viver os dias de exaltação oposicionista sentidos noutras localidades do país. A intensidade vivida em, por exemplo, Lisboa, Porto e Braga e também em várias localidades a sul do Tejo não é comparável à que se viveu na nossa cidade.

A candidatura de Humberto Delgado não promoverá nenhum grande comício durante a campanha eleitoral. A ação com maior impacto foi a sua passagem por Setúbal no dia 4 de junho de 1958, aquando do seu regresso a Lisboa, vindo da campanha do Algarve e Alentejo.

Humberto Delgado foi aguardado por uma multidão que pretendia vitoriá-lo e, eventualmente, fazê-lo parar para uns minutos de confraternização. Desde a entrada em Setúbal, no sítio das Pontes, até à saída da cidade em direção a Lisboa, formaram-se vários grupos para vitoriar Delgado, no percurso que fez pela cidade. Alguns desses apoiantes ostentavam cartazes com a foto do General.

Setúbal Mais – Na apresentação do livro disse que este era uma homenagem aos resistentes e aos presos políticos. É importante para as novas gerações não esquecerem esses tempos?

Albérico Afonso – É de facto importante, que as novas gerações tenham conhecimento deste nosso passado recente para que não se repita. É igualmente importante que a memória histórica e cultural desta cidade não se perca.

Pretendemos homenagear os que de uma forma anónima protagonizaram uma oposição ao regime correndo riscos pessoais, profissionais e familiares. Para eles vai esta memória de um tempo que combateram. O que se quer sublinhar é que a História da cidade não pode limitar-se às referências sobre as elites políticas, religiosas ou económicas. Os que ousaram de forma generosa lutar pela liberdade, pela democracia e pela dignidade da pessoa humana, deverão ter direito a um lugar de honra na memória e na História dos setubalenses.

À semelhança do 1.º Volume integrámos uma síntese biográfica dos presos políticos. Para além destes biografados, incluímos também aqueles que de outra forma foram igualmente perseguidos pela PIDE setubalense. Referimo-nos aos que foram interrogados e ameaçados na sede da PIDE local, a outros que foram referenciados e identificados nos seus relatórios como “elementos desafetos ao Regime”, “carimbo” que serviria para informar entidades públicas e privadas da sua “perigosidade” social.

Setúbal Mais – Foca também a contestação dos católicos sociais ao Estado Novo. Este é um assunto novo pouco falado. Ainda é tabu?

Albérico Afonso – Um dos capítulos do livro é dedicado à ação dos católicos sociais em Setúbal. Este tema nunca havia sido estudado. Era desconhecida a dimensão da sua intervenção cívica na sociedade setubalense.

Estes católicos, influenciados pelos debates que ocorrem no quadro do Concilio do Vaticano II, vão desempenhar um papel muito relevante na cidade. Desde logo o Cónego João Alves que veio para Setúbal em 1966 com o objetivo de criar a diocese. Irá imprimir uma nova dinâmica e filosofia de intervenção à Ação Católica. O episcopado vai incentivar a Juventude Operária Católica e a Liga Operária Católica a assumirem uma militância sociocultural e a marcarem presença no mundo do trabalho. Ao mesmo tempo promove cursos, retiros espirituais e outros encontros de católicos, incentivando-os a agir no espírito de “solidariedade cristã”.

É também sob o impulso deste Cónego que será criado o Secretariado Cristão de Ação Social, responsável pela génese de vários serviços de apoio aos mais necessitados, desenvolvendo ações no âmbito do acolhimento, saúde, emprego, alfabetização, criação de centros de estudo e formação e, ainda, de creches.

Os sectores mais conservadores da cidade crismarão o Cónego João Alves como o “Bispo Vermelho”, à semelhança do que duas décadas mais tarde acontecerá com D. Manuel Martins.

Também em 1966, o grupo “Fraternidade Operária”, constituído por padres operários e seminaristas, radica-se nas Praias do Sado, proletarizando-se com o objetivo de cristianizar o operariado setubalense. Estes são alguns exemplos da intervenção dos chamados católicos sociais nos últimos anos do Estado Novo.

Toda esta atividade desesperava a polícia política. A PIDE setubalense fará frequentes relatórios para Lisboa, mostrando a sua incredulidade perante a atuação dos padres da pastoral de Setúbal.

Setúbal Mais – Estes livros resultam de muito tempo de investigação feita por si. Pode explicar como desenvolve esse processo, uma vez que deve ser difícil chegar às fontes de informação?

Albérico Afonso – Nos últimos três anos, dediquei-me quase exclusivamente à investigação agora publicada. Implicou um processo de recolha de informação muito exigente em vários arquivos. Na Torre do Tombo, só no arquivo referente à PIDE, consultei mais de 25.000 documentos. Entrevistei mais de três centenas de protagonistas ou de familiares de alguns já falecidos, que viveram durante este período. Felizmente pude ainda consultar vários arquivos particulares, tendo-me sido disponibilizados de uma forma generosa vários documentos. No fundo é o percurso normal de uma investigação na área das ciências sociais.

Setúbal Mais – Pretende continuar com esta temática, numa espécie de trilogia, até abranger 1974?

Albérico Afonso – O segundo volume de Setúbal sob o Estado Novo integra a última fase do projeto de investigação sobre a História da cidade, no período compreendido entre 1950 e 1974. Este projeto foi iniciado em 2009 no âmbito das minhas atividades como docente do ensino superior e como investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Esta investigação permitiu já a publicação de oito livros que, de algum modo, pretenderam trazer à luz do dia momentos, locais, nomes esquecidos e memórias fundamentais da cultura e da História da comunidade setubalense. Este ciclo de investigações ficará concluído, no próximo ano, com a edição do livro sobre a intervenção cívica de José Afonso em Setúbal e sobre o papel do Círculo Cultural de Setúbal, como espaço icónico de resistência à ditadura.