Sebastião da Gama e Matilde Rosa Araújo, a santa Alegria (1)

Em 1946, era publicado o livro de curso dos alunos que concluíam a licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa, intitulado “Novíssimo Cancioneiro”, aí constando nomes como Artur Nobre de Gusmão (1920-2001), Jaime Zuzarte Cortesão Casimiro (1923-2014, filho de Augusto Casimiro), Joel Serrão (1919-2008), José-Augusto França (n. 1922), Luís de Sousa Rebelo (1922-2010), Maria de Lourdes Belchior (1923-1999), Maria Judite de Carvalho (1921-1998) e Matilde Rosa Araújo (1921-2010). A página dedicada a Matilde Rosa Araújo, de Filologia Românica, além da caricatura assinada por Maria Almira (Barbosa Medina), tinha três poemas dedicados subscritos por José Mealha, Leopoldo Araújo e Sebastião da Gama, todos eles insistindo sobre a qualidade de escrita que a recém-licenciada (com a tese “A reportagem como género: génese do jornalismo através da constante histórico-literária”, de 1946) já revelava.

            O texto de Sebastião da Gama, em cinco estrofes datadas de 15 de Janeiro de 1945, é o mais longo e, além de referir a obra da amiga, ponto de partida para o relacionamento entre os dois, acentua a amizade nascida: “Foi ali que te encontrei; / Ali que eu vi a minha alma, / Mendiga de chicotadas, / Encontrar uma parecida. / Depois falámos e rimos. / (…) / E quando riste comigo / Foi p’ra fazer-me esquecer / O meu negro mal antigo; / Foi p’ra fazer afogar / Minhas lágrimas em riso…” Na última estrofe, o amigo esclarece os meandros dessa amizade ao mesmo tempo que deseja a felicidade da amiga: “Ah, camarada / (camarada minha em tudo; / No bafio dos estudos, / E no chocalho dos risos, / E no fado de exibirmos / A alma como na feira), / Sê bendita, sê bendita! / E tenhas na tua Dor, / E tenhas no teu Amor, / O caminho que te leve / Aquela santa Alegria / Infinita / Que à tua Ânsia se deve.” Os estudos, as gargalhadas e a expansividade constituem o trio do que cultivou esta amizade, segundo o jovem de Azeitão, à data com 22 anos. Matilde Rosa Araújo registaria na dedicatória do exemplar do livro de curso que ofereceu ao amigo, em Agosto de 1946, o seguinte testemunho: “Para o Sebastião com a saudade do tempo em que o conheci moço e menino a romper os calções nos bancos da Escola – com as mãos cheias de Poesia e a alma de Pureza em Claridade – ingenuidade de menino-poeta. Para o Sebastião a quem a minha alma tanto deve.”

            No ano seguinte, 1947, o livro de curso dos finalistas da Faculdade de Letras de Lisboa apresentava o longo título “Nós os Finalistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa fomos assim…”. Por este curso passaram figuras como Eurico José Correia Lisboa (1915-1995), Fausto Lopo de Carvalho (1923-1994), José Manuel de Noronha Gamito (1922-2011), Luís Filipe Lindley Cintra (1925-1991), Maria Alice Gyrão Calheiros Botelho Moniz (1925-2007) e Sebastião da Gama (1924-1952). A página dedicada ao poeta de Azeitão (licenciado nesse ano com a tese “Apontamentos sobre a poesia social no século XIX”) apresenta dois poemas, ambos exaltando a sua ligação à Arrábida, assinados por Maria Helena Serra e por Matilde Rosa Araújo, acompanhando uma caricatura em que o homenageado apresenta um ar rural, transportando um livro de versos que tem flores como marcador e, ao fundo, a “serra-mãe”.

caricatura de Sebastião da Gama no livro de curso de finalistas

            É numa estrofe de 21 versos que a amiga que se licenciara no ano anterior reforça o elogio da amizade que os unia, impressionada pela figura do poeta vindo da serra: “Que hei-de eu dizer ao Poeta, / A Serra-Mãe num corpo desajeitado / de saloio, como lhe chamaram um dia / em que ele, de chapéu ao lado, / os olhos enovelados de Poesia, / caminhava pela rua, que pisava, / com a alma lá longe, onde não estava?” Esta dúvida sobre o que dizer ao seu destinatário manter-se-á no poema até final, com a confissão da insuficiência das palavras para retratar o amigo: “Que hei-de eu dizer-te, meu irmão de tanta hora, / alma rasgada, toda em sangue partida, / a cheirar a rosmaninho, a maresia, / e a esta coisa que se chama a Vida? / Que te hei-de eu dizer, meu Irmão, sem ser / de joelhos pedir-te mil vezes perdão / pelo que a minha boca quer mas não sabe dizer?” Passavam evidentes por este poema alguns dos traços fortes que caracterizariam Sebastião da Gama, como a sua simplicidade, a poesia dominada por uma atitude contemplativa perante a criação, a vida como tema de (en)canto, o papel desempenhado pela amizade, sublinhando ainda Matilde Rosa Araújo a forma de tratamento frequentemente utilizada entre os dois amigos – “irmão” ou “mano”, designações que povoariam a epistolografia trocada entre ambos.

            Terá o relacionamento entre Sebastião da Gama e Matilde Rosa Araújo começado nos bancos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde, aliás, muitas amizades começaram tendo como elemento importante o jovem azeitonense, como foram as travadas com as personalidades já indicadas e com, entre outros, David Mourão-Ferreira (1927-1996), Helena Cidade Moura (1924-2012), Maria de Jesus Barroso (1925-2015) e Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013).

Caricatura de Matilde Rosa Araújo no livro de curso de finalistas

            O testemunho mais evidente que ficou da amizade entre Matilde Rosa Araújo e Sebastião da Gama reside nas cartas que trocaram, uma vezes porque estavam geograficamente distantes (Matilde, no Norte do país, em Pêso, ou, perto de Sintra, em Algueirão, quando não estava em Lisboa), outras vezes porque estavam impossibilitados de se encontrar temporariamente (por doença, por exemplo), outras ainda porque queriam conversar (mesmo que no dia seguinte se encontrassem na Faculdade), noutras porque comentavam os textos mútuos (rendendo-se ao encantamento da poesia) e noutras rindo entusiasticamente a propósito de colegas ou de professores, do ambiente da Faculdade, num misto de humor, ironia e comentário (muitas vezes jocoso).

            Os dois mais antigos documentos deste encontro em que ambos se carteavam remontam a 1944: a missiva de Matilde, de 29 de Março, começa com votos festivos, pois a Páscoa seria na semana seguinte (9 de Abril) – “Sebastião, aqui tem a carta prometida. Para lhe desejar uma Páscoa toda aleluia, na Serra cheia de Primavera e Poesia.” Humoradamente, explica que não vai usar a má-língua, pois “até era pecado”, e promete ser “uma menina cheia de juízo, quase mãe de família”. Anexa a esta carta páginas do seu diário dos últimos dias (“Mando-lhe extractos do meu diário – será Descartes em autobiografia? Estou cheia de matière metafísica, filosófica! Diário em extracto até parece farmácia!”), partilha que atesta, apesar da forma de tratamento usada, proximidade entre os dois amigos. A mais antiga epístola de Sebastião da Gama data de 24 de Junho, em envelope dirigido para Lisboa, à “Menina Matilde Rosa Araújo”. No intervalo, terá havido mais cartas cujo paradeiro se desconhece. Mas esta mensagem é importante porque insiste num dos que será um tópico importante desta correspondência: a troca de impressões sobre os poemas que um e outro iam fazendo e permutando, no sentido de saberem a opinião do outro. Entusiasmado com um poema intitulado “Deixa os remos” que Matilde lhe enviara (“A impressão que já tinha não embaciou; e é ainda aos berros, como naquela Nossa Senhora Faculdade, que Deus perdoe, que eu leio, a mim e aos outros, o ‘Deixa os remos’”), Sebastião incentiva Matilde a prosseguir na escrita de novelas (do género de “Garrana”, publicada em 1943) e aconselha-a a que “de vez em quando parta as vidraças e grite um verso para o ar cá da rua”, escrevendo depois sobre a sua própria poesia e a relação com os espaços abertos: “Eu tenho a impressão de que os versos me acontecem, e sucedem em mim como isto de eu abrir a boca e o Vento fazê-la cantar, silvar, ou lá o que é. Não julgue que é isto ‘literatura’: embirro com fazê-la e esta sensação é das melhores que vivo aqui, ‘na Serra, ao ar’. Lá facilzinho é, como pensa a Matilde, mas nem sempre há Vento.” De 5 de Junho deste mês é o poema “Baixinho”, incluído na obra póstuma “Itinerário paralelo”, em que o poeta dialoga com o vento, impondo-lhe sossego: “Eu gosto de te ouvir, oh Vento! / Mas não andes agora a ramalhar / ao pé de mim. // (…) // Porque eu sinto a minh’alma a querer falar: / Porém tão em segredo fala ela / que, se tu continuas, Vento, a ramalhar, / não consigo entendê-la…” Não há contradição entre as duas observações sobre o vento – a inspiração pode ajudar na poesia, mas o mais importante é o trabalho sobre a palavra!

(continua)

João Reis Ribeiro