Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa: “Esta crise aconteceu de repente e com problemas gravíssimos em catadupa”

Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa, manifesta preocupação com a situação social e económica das famílias, vítimas da pandemia, e não prevê uma recuperação rápida do país como foi anunciada pelo governo. Receia um grande aumento do desemprego e a falta de emprego para os jovens recém licenciados. Por isso, defende a criação de um rendimento de substituição para ocupação das pessoas em actividades úteis para a sociedade, devidamente remuneradas. O responsável elogia a resposta rápida dos portugueses no apoio com bens alimentares aos mais necessitados e não se recorda de uma crise tão grave no país.

Florindo Cardoso

Setúbal Mais – Como está a Cáritas Portuguesa a acompanhar a situação social e económica em resultado da pandemia?

Eugénio Fonseca – A situação registou um pico em Abril, em Maio foi menor e em Junho está mais estabilizada. A razão é a seguinte, em Abril as pessoas foram surpreendidas pelo encerramento de muitas actividades e as empresas atingidas solicitaram o lay off, mas as candidaturas não foram analisadas em tempo útil para que nesse mês fosse possível pagar o que era devido no âmbito da lei e as empresas ficaram numa situação financeira difícil e muitos trabalhadores não receberam salário. Por outro lado, determinadas empresas, apercebendo-se da situação, sobretudo as micro e familiares, despediram os trabalhadores. Alguns requereram o subsídio de desemprego mas este também não chegou de imediato. Outros não tiveram direito ao subsídio de desemprego porque trabalhavam sem contrato. Os salários nos últimos anos baixaram bastante, em termos médios, pelo que as pessoas não puderam fazer poupanças.

S.M. – Esta crise é diferente das anteriores?

E.F. – Esta crise aconteceu de repente e com problemas gravíssimos em catadupa, não se registando a progressividade que existiu na anterior, onde foi possível adaptar os recursos às necessidades das pessoas. Actualmente, com o lay off, as pessoas estão a receber uma parte do vencimento porque há empresas que não conseguem pagar o salário na totalidade, e as que tinham direito a fundo de desemprego também já estão a receber e foram criadas medidas compensatórias por parte do governo como os encargos com as rendas da casa, com as moratórias, assegurando que até Dezembro ninguém é despejado das suas casas. Também garantiram-me que ninguém iria ficar sem electricidade, água e gás. As empresas fornecedoras destes serviços essenciais também têm moratórias em que as pessoas continuarão com acesso aos mesmos, tendo de pagar mais tarde os saldos em dívida. Quanto à água, a maior parte está concessionada aos próprios municípios que gerem a sua distribuição, mas há casos, como o de Setúbal que entregaram a gestão a outras entidades (Águas do Sado), e existem outros, como o de Palmela, que isentaram os munícipes do pagamento durante um determinado tempo, não criando dívida para os munícipes. É uma situação desigual dos cidadãos perante um bem que é necessário.

Todas estas situações amorteceram os encargos das famílias. Só que coloca-se um problema no futuro. É que as pessoas, exceptuando as isenções referidas, não ficaram ilibadas de pagar, mas estou confiante de que as dívidas ao Estado serão muito maleáveis, que será sensível a este problema. O mesmo poderá não acontecer com as entidades empresariais, sejam público-privadas ou privadas porque também têm encargos que o Estado não tem, e receio que o ressarcimento das dívidas contraídas agora pelas famílias com estas entidades venha complicar a vida das famílias a partir do próximo ano.

S.M. – O desemprego vai ser um problema…

E.F. – Os especialistas referem que a situação do desemprego vai acentuar-se a partir de Setembro, podendo ter o seu pico no primeiro trimestre de 2021, face à conjuntura internacional, porque estamos a falar de um problema que atingiu o mundo. Vamos estar confrontados com uma crise financeira, que não se conhece igual há cem anos a esta parte.

O problema só agora começou mas vai intensificar-se com os postos de trabalho a desaparecer. Foram concedidos benefícios fiscais às empresas, como a dispensa de pagar temporariamente alguns encargos para não encerrarem mas terão de o fazer no futuro. Quando acabarem essas condições às empresas, algumas não vão conseguir sobreviver.

Há outro problema para o qual tenho chamado a atenção e gostaria de ter resposta. Prevê-se que saiam das universidades entre 40 a 50 mil licenciados. Ora, a emigração já não é solução porque o problema é idêntico em todos os países, as entradas e saídas do país vão estar muito condicionadas porque ninguém garante de que o vírus não se expanda ainda mais e não haverá postos de trabalho disponíveis para estes jovens licenciados. Só têm uma alternativa que é continuar a prosseguir os estudos para o mestrado. Já fiz um apelo ao ministro do Ensino Superior e da Ciência para a revisão dos valores pagos pelo acesso aos mestrados. Por si só já são muitos elevados e agora com a carência financeira das famílias, tornam-se impossíveis de suportar para muitos. Não adianta conceder créditos bancários porque vai acontecer o mesmo que nas crises interiores, as pessoas não conseguem empregos estáveis e rendimentos suficientes para pagar tantos encargos nem permite aos jovens criarem a sua própria autonomia.

No campo da alimentação, que foi a situação mais emergente, felizmente os portugueses deram uma resposta extraordinária aos apelos dos bancos alimentares. Foi uma ajuda muito generosa. Só que estes têm de ser confecionados e para isso terá de haver acesso à água, electricidade e gás. Há pessoas que não estão a recorrer ao crédito, embora ele se mantenha aberto, porque percebem que estão apenas a adiar um problema. Então, procuram as cáritas diocesanas para as ajudar a pagar parte dos encargos dos bens e serviços que precisam para sobreviver. Neste momento, estamos a apelar aos portugueses que nos ajudem para apoiar o pagamento destes serviços essenciais, as propinas dos universitários e pacotes de internet porque temos alunos que não têm comunicações fixas em casa, e os plafons esgotam-se e as pessoas não conseguem aceder à rede. Pessoalmente, considero que deveria haver um acordo entre senhorios e inquilinos nas associações que os representam para baixar os valores das rendas das casas. Interessa mais a um senhorio baixar o valor do que ter créditos mal parados.

Presidente da Cáritas lança apelo:

“Esta recuperação económica terá de ser inclusiva”

Eugénio da Fonseca não acredita numa recuperação económica rápida do país porque dependemos muito do exterior. O responsável defende uma recuperação inclusiva e justa.

S.M. – Acredita numa recuperação económica rápida do país?

E.F. – Penso que estas medidas criadas para este orçamento suplementar são necessárias mas estou convencido, até porque a nossa economia está muito dependente da dinâmica externa, que não vamos fazer a recuperação económica que estamos a anunciar. A recuperação económica vai acontecer forçosamente mas será lenta e talvez vá pedir sacrifícios aos portugueses que agora não estão anunciados. A União Europeia já nos disponibilizou milhões de euros mas já começámos a ouvir falar em taxas de solidariedade, que é sobre rendimentos capitalizados mas outras coisas terão de vir porque não se faz dinheiro à medida das necessidades. Há que ser muito realista e tomar medidas adequadas e estas terão de passar pela reformulação da carga fiscal de modo a torná-la mais justa. Esta recuperação económica terá de ser inclusiva, em que ninguém fique posto de parte. Posso estar a ser idealista, mas não podemos colocar de parte as pessoas só porque têm determinada idade. É preciso contar com todos para o crescimento económico.

Presidente da Cáritas defende:

“É importante que o governo crie um programa que gere rendimentos de substituição”

Para Eugénio da Fonseca é preciso criar condições para as pessoas não caírem na pobreza. Por isso defende a criação de um rendimento de substituição para ocupar as pessoas em actividades úteis para a sociedade mas devidamente remuneradas.

S.M. – Qual é a solução para as pessoas em dificuldades económicas?

E.F. – É muito importante que estas pessoas que estão em dificuldades que as superem e não caiam na pobreza. Não lhes quero chamar pobres porque em Portugal são estigmatizados, digo que são cidadãos que se viram privados dos rendimentos que possuíam para subsistir. É importante que o governo crie um programa que gere rendimentos de substituição. Este rendimento será atribuído na realização de actividades socialmente úteis. A pessoas em vez de ficarem em casa, a pensar nos seus problemas, teriam uma ocupação com horário de trabalho e pelo menos com a atribuição do valor do salário mínimo nacional, e gostava até que não perdessem o vínculo com a segurança social, contando esse tempo se serviço para a reforma. Defendo a realização de actividades de formação em contexto de trabalho para abrir horizontes para novas possibilidades de trabalho. Há uma panóplia de actividades como o apoio aos idosos, onde existe um enorme nicho de mercado de trabalho, a defesa do ambiente onde gastamos milhões, a recuperação de casas devolutas, cujos proprietários são pobres e não a conseguem fazer. Se houver cursos de formação, não defendo aqueles que só servem para justificar a ocupação das pessoas porque depois não servem para nada. Há uma área importante para todos, em termos de formação, que é a informática, porque actualmente tudo o que se tem de fazer em termos de requerimentos ou consultas é através da internet, e até parte do pressuposto de que todos os cidadãos têm computador em casa, o que se veio a provar que é falso porque no ensino à distância verificou-se que pelo menos 20 mil alunos não tinham acesso a computador. Deveria apostar-se na literacia informática, permite ter ferramentas para poder procurar e candidatar-se a um posto de trabalho e, depois de estar empregado, saber lidar com as novas tecnologias. Não vamos outra vez cavalgar em cursos de formação para inventar ocupação de pessoas, só se estiver garantido de que mais de 50 por cento ficam empregadas. De resto é gastar dinheiro sem nenhum interesse.

A isto chamo rendimento de substituição enquanto não existirem postos de trabalho. Estou convencido que poderão ser criados postos de trabalho mas não vão ser em número suficiente para colmatar aqueles que se vão perder.

Defendo que é necessário mexer no rendimento social de inserção porque tem potencialidades que ainda não foram totalmente aproveitadas e até tem servido para atacar uma medida que não tira ninguém da pobreza. Há grupos sociais que se não tivessem apoio desta medida, os seus filhos não tinha ido à escola como passaram a ir. É preciso investir mais nesta medida e se for necessário aumentar a dotação, criando condições contratuais melhores.

Considero que os nossos grupos parlamentares têm que unir-se para vencer a batalha daquilo que é fundamental para o bem-estar daqueles que representam. Deixamo-nos de ideologias nesta hora para concentrar nas necessidades das pessoas. As ideologias não matam fome nem dão emprego. Gostaria de ver os partidos, pelo menos aqueles que podem aprovar medidas, como aconteceu com a pandemia, se unissem no essencial para alcançar rapidamente caminhos de recuperação. Se começamos a levantar divergências secundárias nestes processos, tudo tarda e internacionalmente olham para nós com alguma desconfiança.

S.M. – Na sua larga experiência social, esta é mesmo a pior crise de todas?

E.F. – O que me surpreendeu foi acontecer tão rapidamente e com agressividade. Os analistas dizem que vamos ter um impacto na economia que não acontecia há cem anos, a nível do desemprego e das exportações. Não quero fragilizar a esperança de ninguém, se nos unirmos vamos ultrapassar, deixando de olhar para aspectos periféricos. Os sindicatos também têm de olhar para os desempregados, e não somente naqueles que já têm emprego. Penso que os sindicatos têm de dar um sinal de que a sua preocupação fundamental é também os desempregados, respeitando a dignidade das pessoas no trabalho, nos rendimentos porque não se pode aproveitar estas circunstâncias para se explorar mão-de-obra. Temos de respeitar a dignidade de cada pessoa que passa por não fazer aquilo que não queremos que nos façam a nós. Esta pode ser uma altura que pode ser usada para oferecer trabalho a qualquer preço e depois temos vozes a afirmar que têm postos de trabalho mas não tem trabalhadores mas isso acontece porque as pessoas não aceitam por não oferecer um rendimento digno e justo.

As pessoas ficaram espantadas de que o lay off só lhe deu o salário mínimo nacional. Isto aconteceu porque acordaram com os seus empregadores um valor menor de remuneração para efeito dos descontos para pagar menos à segurança social e finanças e recebiam por fora a diferença. Agora só ganham o valor do salário mínimo e quando chegar à reforma verificam que é baixa porque entraram neste acordo. Tenho consciência de que as exigências da vida são tantas que muitas vezes têm que ceder a propostas deste tipo. Além disso, temos uma economia informal, fora do sistema tributário, que terá de ser reintegrada. Na minha perspectiva esta crise vai ser muito mais grave que qualquer outra que já conheci.

S.M. – Outra diferença foi o tipo de pessoas que pediu ajuda?

E.F. – O tipo de pessoas é o mesmo da anterior crise, que é classe média e média-baixa. Não podemos esquecer que antes desta crise já tínhamos mais de 17% de pobres em Portugal, e destes 9% eram trabalhadores pobres. E quando se diz que a classe média alta também procurou ajuda, temos diferenciar entre profissões que ligamos a essa classe como os advogados, solicitadores, dentistas, etc, em que estes adquiriram um estatuto mais alto. Não é suposto que um advogado ou um dentista estejam a passar fome mas estão, porque o enquadramento à volta não era de uma classe alta, eles é que se isolaram pela profissão exercida. Estou convencido que na classe média alta, se algum deles se fragiliza, os outros vão colmatar.

Eleição do bispo de Setúbal:

“É uma honra para a nossa diocese

Eugénio da Fonseca congratula-se com a eleição do bispo de Setúbal para a presidência da Conferência Episcopal Portuguesa.

S.M. – Como encarou a eleição do bispo de Setúbal para presidente da Conferência Episcopal?

E.F. – Sendo diocesano que está sob a responsabilidade de D. José Ornelas, foi uma honra a para nossa diocese, o seu bispo ter sido escolhido para presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Desejo que o Espírito Santo lhe dê a sabedoria e fortaleza necessárias para que aconteçam as mudanças que o Papa Francisco tem procurado implementar e que se evidenciem com maior clarividência na Igreja de Portugal.