Presidente da Associação Cultural Sebastião da Gama, Lourenço de Morais: Sebastião da Gama, o poeta da esperança

“Para esta presença de Deus, a toda a hora sentida, partiu com 27 anos, no dia 7 de Fevereiro, em 1952, Sebastião da Gama”. Assim terminava Maria de Lourdes Belchior a apresentação da obra “Cartas I” (1), no ano de 1992.
Completam-se 70 anos da partida de Sebastião da Gama deste mundo. E se as efemérides são boas oportunidades para o manter vivo na nossa memória, elas também devem servir para recordar e renovar as razões da nossa admiração.

O escritor inglês C.S. Lewis, ensaiando sobre a experiência de ler, comparava o acto de leitura à observação de um quadro: “Sentamo-nos em frente do quadro para que ele nos faça algo, não para fazermos algo com ele. A primeira exigência que nos faz uma qualquer obra de arte é a de uma entrega. Olhar, Escutar, Receber. Retirarmo-nos do Caminho”. Só quando assim é, a experiência da leitura se torna “tão importante que só experiências amorosas, religiosas ou de profunda perda se lhes podem comparar”; e só aí os leitores vêem toda a sua consciência transformada; “Tornam-se algo que não eram antes” (2).
Recorro a C.S. Lewis em modo de provocação para sublinhar uma evidência: é que o lugar de Sebastião da Gama – da sua obra, da sua pedagogia, do seu exemplo e de tudo quanto nos legou – será aquele que nós deixarmos que seja; o que nós deixarmos que ele nos faça; o que soubermos olhar, o que soubermos escutar, o que soubermos receber, o que, parando e nos entregando, soubermos reter.

As referências a Sebastião da Gama vêm muitas vezes acompanhadas de uma longa lista de qualidades descobertas no jovem poeta que em apenas 27 anos de vida deixou marcas profundas naqueles com quem se cruzou.
Nunca é demais recordar muito do que ao longo dos anos foi sendo dito pelos seus amigos, conhecidos, alunos ou apenas estudiosos ou curiosos: a sua alegria e o seu humor; o sorriso aberto; a sua permanente abertura a todos; a admiração, amor e dedicação à serra da Arrábida, de que conhecia todos os segredos (sendo vários, de David Mourão-Ferreira a João Benard da Costa, aqueles que revelaram o que com ele aprenderam acerca da Serra-Mãe); a irmandade com Frei Agostinho da Cruz; o apaixonado por Joana Luísa; o aluno exemplar; o educador consciente do risco que é educar enquanto elemento decisivo da construção do carácter dos Homens; o Mestre que ensinava com um profundo amor ao destino dos seus alunos, conforme ficou demonstrado na sua também curta experiência pedagógica, experiência essa que marcou profundamente a vida de todos os alunos e encarregados de educação com quem se cruzou (e de que o “Diário” constitui um relato completo); o Homem de cultura cujas cartas, na ausência da sua biblioteca, revelam um leitor voraz e de gostos variados.

Relativamente à sua obra escrita, o Homem que queria ser, em primeiro lugar e antes de tudo, Poeta (como escrevera à sua amiga Maria dos Remédios Castelo-Branco, “Doutor. É cómico, sabes? O que me interessa na vida, o que, a meus olhos, me dá importância social e individual, aquilo, ainda, por que tudo sacrificaria – é isto de ser Poeta. A minha licenciatura foi a ‘Serra-Mãe’.” (3)) –foi periodista e, além das obras já conhecidas do público, deixou-nos várias centenas de poemas ainda inéditos; centenas de cartas por inventariar, diversos ensaios e conferências.
Tudo isto torna Sebastião da Gama um homem de excepção e digno de memória.
É possível ficarmos indiferentes a tudo isto?
Pessoalmente, poderia elencar diversos elementos que me causam grande comoção em Sebastião da Gama. Hoje, no entanto, destacarei apenas um: é que não encontro em outro poeta tamanha esperança – entendida enquanto certeza do futuro nascida de uma realidade presente (4).
O Homem que escreveu o poema “Condição”, cujos versos tomei por lema: “Constrói ao menos, qualquer coisa efémera. Pois mais não podes ser, sê ao menos efémero” (5), era um disciplinado e exigente escritor, bastante prolífico, e que se dedicava quase até à exaustão ao labor da escrita.

Naquilo que parece ser o pressentimento de uma vida breve, Sebastião da Gama procurou concentrar o seu tempo na obra que queria completar (terá chegado a dizer a David Mourão-Ferreira, que não tinha tempo para estar nos cafés precisamente por essa razão).
Mas é curioso e digno de perguntar: se aqui tudo é efémero, para quê dar-se a tanto esforço? Que queria então ele completar? Parece contraditório.
Esta é, porém, uma das virtudes que mais aprecio no poeta da Arrábida.
Consciente da sua fragilidade e da perenidade do Homem, Sebastião da Gama recorda-nos que a vida não é nossa, mas algo que nos foi dado viver. A vida é passageira, é efémera; e por isso pode ser-nos retirada a qualquer momento.
Enquanto homens que somos, os nossos actos partilham desta natureza temporária. Tudo o que fizermos hoje, poderá não existir amanhã. E é isso que o poeta nos aconselha: aqui, neste mundo, constrói ao menos algo efémero, pois aqui nada mais podes almejar.
Essa certeza não lhe retirou qualquer gosto pela vida. Muito pelo contrário. E essa alegria de viver que o caracteriza decorre precisamente do facto do seu horizonte – da sua meta – não ser aqui, neste mundo, mera estação de passagem; mas sim no outro mundo onde a Graça Divina nos recebe, nesse mundo onde tudo é eterno. Ele transporta consigo uma certeza que dá à sua vida um significado de missão e de Sinal. E é por isso que os gestos de Sebastião da Gama, a sua entrega (à vida, ao ensino, à poesia, etc), – tal como a entrega de Joana Luísa, após a sua morte, “à missão sublime” (6) de perpetuar a sua memória – são sinal de algo maior, são sinal de esperança: eles dão-nos a certeza de um futuro que nasce desta realidade presente. Indiferentes às coisas efémeras da vida e do nosso tempo, Sebastião da Gama e Joana Luísa, centram o olhar na eternidade.

Notas: 1 – GAMA, Sebastião, Cartas I, Ática Editores, Lisboa, 1994, pág.16; 2 – LEWIS, C.S., A Experiência de Ler, Porto Editora, Porto, 2000, pág. 11 e 33; 3 – Citado em RIBIERO, João Reis, “Sebastião da Gama e a Arrábida: Uma relação feliz” in Arrábida, em contínuo, Edição Digital Parque Natural da Arrábida e Instituto da Conservação e da Natureza e das Florestas, pág. 39; 4 – SEABRA, João, “Apresentação” in PÉGUY, Charles, O Pórtico da Segunda Virtude, Grifo, Lisboa, 1998, pág. XII; 5 – GAMA, Sebastião, Campo Aberto, Edições Arrábida, Mem Martins, 2007, pág. 110; 6 – GAMA, Joana Luísa, “Introdução” in GAMA, Sebastião, Cartas I, Ática Editores, Lisboa, 1994, pág. 21.