Luís Humberto Teixeira sobre os “votos ignorados” nas eleições em Portugal: “Não se pode continuar a ignorar uma parte tão significativa do eleitorado”

Luís Humberto Teixeira nasceu em Setúbal em 1977. Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal e mestre em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tem desenvolvido trabalho em diferentes áreas, do jornalismo aos eventos culturais, passando pela ciência política. Nesta última, foi autor de diversos estudos sobre o sistema eleitoral português, dedicando particular atenção aos votos que não são convertidos em mandatos. O estudioso desta temática alerta que só em 2022, os votos válidos não convertidos em mandatos foram 730.011, o que correspondeu a praticamente todos os eleitores que votaram de forma válida nos círculos de Setúbal, Évora, Beja e Faro. “Não se pode continuar a ignorar uma parte tão significativa do eleitorado”, considera Luís Humberto Teixeira, adiantando que a lei não é mudada pelo “medo” dos partidos políticos e o atual sistema beneficia o PS e o PSD.

Florindo Cardoso

Setúbal Mais – No dia 10 de março de 2024 vamos ter novas eleições legislativas. Há muito tempo que estuda a temática dos “votos ignorados” que não elegem deputados. Pode explicar essa situação?

Luís Humberto Teixeira – Numa democracia representativa, há quase sempre votos válidos que não são convertidos em mandatos de deputado. É o que sucede quando uma lista candidata por um círculo tem votos, mas não elege representantes. Esse desaproveitamento dos votos é inevitável quando, por exemplo, concorrem 17 listas a um círculo que apenas elege três deputados e não existe qualquer mecanismo de compensação que aproveite os “votos ignorados”.

Portanto, a existência deles é normal. O que não é normal é representarem mais de 10% do total de votos válidos depositados nas urnas, que é o que tem acontecido em todas as eleições desde 2015.

Para fazer chegar este conhecimento ao cidadão comum, uni esforços com o Carlos Afonso, que é engenheiro informático, e, em 2022, lançámos o site www.omeuvoto.com, onde qualquer eleitor pode, de forma anónima, saber se os seus votos ao longo dos anos foram convertidos em mandatos.
Recebemos reações de pessoas indignadas por descobrirem que, em quarenta anos, os seus votos não contribuíram para eleger ninguém. E também de pessoas que, tendo tido os seus votos sempre aproveitados, assinaram a petição associada ao site por compreenderem a gravidade da situação.

Setúbal Mais – No caso do círculo eleitoral de Setúbal qual é o ponto de situação? Tem sido também prejudicado?

Luís Humberto Teixeira – Sim, claro. Porém, por ser um círculo com uma dimensão bastante razoável (atualmente elege 18 deputados), costuma ter percentagens de “votos ignorados” inferiores à média nacional. Nas 17 eleições que ocorreram em Democracia, Setúbal só esteve acima da média nacional em quatro ocasiões: 1976, 1979, 1985 e 1991.

Em termos absolutos, o recorde de votos não convertidos em mandatos em Setúbal é de 43.908, em 2019, o que correspondeu a 11,53% do total de votos neste círculo. Ou seja, 1 em cada 9 eleitores do distrito viu o seu voto cair em saco roto. São percentagens e valores que deviam levar-nos a refletir, e sobretudo a agir, para melhorar a representatividade do nosso sistema democrático.

Setúbal Mais – A nível nacional, com a emigração, a deslocação das pessoas do interior para o litoral e o envelhecimento da população, este fenómeno pode agravar-se?

Luís Humberto Teixeira – Dessas três situações, há duas que podem agravar o fenómeno: a emigração e a desertificação do interior. A primeira, porque a lei determina que os nossos emigrantes apenas elegem dois deputados em cada um dos dois círculos (Europa e Fora da Europa). A segunda, porque, com um decréscimo no número de eleitores no interior e um aumento no litoral, o interior passa a eleger menos deputados e, como tal, tende a apresentar percentagens mais elevadas de votos válidos não convertidos em mandatos. Por exemplo, nas duas últimas eleições, mais de metade dos votos no círculo de Portalegre não deram origem à eleição de nenhum deputado.

Até onde sei, o envelhecimento da população não tem influência. Mas, confesso, nunca me ocorreu testar essa possibilidade. E é para que essas linhas de investigação que não me ocorrem possam ser exploradas, que já tenho partilhado com outros investigadores a base de dados do site www.omeuvoto.com, onde estão compilados os votos válidos de todas as eleições de âmbito nacional desde 1975. É um pequeno contributo para fazer avançar o conhecimento científico sobre estas matérias.

Setúbal Mais – Fala-se numa pré-coligação nacional entre o PSD e o CDS. Isso seria útil para ambos, neste caso?

Luís Humberto Teixeira – Em 1979, em 1980 e em 2015, os dois partidos coligaram-se a nível nacional em 20 círculos. Nesses 20 círculos, quem votou na Aliança Democrática (1979 ou 1980) ou na Portugal à Frente (2015) viu o seu voto refletir-se num mandato. Naquelas três eleições, nos dois círculos em que os dois partidos não se coligaram (Açores e Madeira), o CDS não elegeu ninguém, desperdiçando dezenas de milhares de votos.

Nos casos em que os dois partidos não fizeram uma coligação pré-eleitoral, o CDS teve sempre votos que não converteu em mandatos e o PSD só conseguiu aproveitar todos em cerca de um terço das eleições (cinco em catorze: 1985, 1987, 1991, 1995 e 2011).

Nas legislativas de 2022, nos dois círculos onde os partidos concorreram juntos (Açores e Madeira), as coligações não tiveram desperdício de votos. Todavia, nos outros 20 círculos, houve um total de 39.604 votos que o PSD não viu convertidos em mandatos, enquanto o CDS não elegeu ninguém, apesar dos quase 90 mil votos que recebeu dos eleitores.

Portanto, a história sugere que uma coligação pré-eleitoral seria muito vantajosa para PSD e CDS no que toca a aproveitar a totalidade dos votos que recebem. E, com isso, reduzir-se-ia o número de votos válidos não convertidos em mandatos a nível nacional.

Setúbal Mais – Qual seria a solução para estes votos ignorados?

Luís Humberto Teixeira – Existem três soluções possíveis para aproveitar melhor os votos.

A primeira é reduzir o número de círculos eleitorais para metade ou menos. Como este desperdício ocorre porque temos muitos círculos, a maioria dos quais de pequena dimensão, esta é uma solução eficaz para amenizar o problema. Por isso, em março de 2023, o PAN propôs, sem sucesso, que dos atuais 22 círculos se passasse para 10, sendo um deles um círculo de compensação.

A segunda é, precisamente, a criação de um círculo de compensação, que é uma solução em vigor nas eleições regionais dos Açores e que permite “repescar” os votos que não foram convertidos em mandatos nos outros círculos, de modo a permitir que partidos com muitos votantes dispersos pelo território tenham eleitos. O Livre propôs essa solução em março de 2023, e a Iniciativa Liberal fê-lo há dias. Não deu em nada.

A terceira é a implementação de um círculo único, solução adotada nas eleições regionais da Madeira. Esta é a opção que mais votos aproveita. Aliás, em 2007, quando este sistema foi posto em prática pela primeira vez, aconteceu uma absoluta raridade: todos os votos foram convertidos em mandatos.

Setúbal Mais – Nos últimos anos já se reuniu com partidos políticos para debater este problema, mas nada foi feito. Na sua opinião, a que se deve essa resistência dos grandes partidos em mudar a lei eleitoral?

Luís Humberto Teixeira – Medo. A esmagadora maioria dos partidos – até os que são prejudicados pelo sistema atual! – tem medo de mudar e muita falta de coragem para aplicar soluções, mesmo que cientificamente sustentadas e com benefícios comprovados para os cidadãos e para o sistema democrático.

Em 2022, a Ordem dos Advogados convidou-me a escrever um artigo sobre esta temática (consultável em https://boletim.oa.pt/converter-mais-votos-em-mandatos-para-proteger-a-democracia) e, apesar de haver uma maioria absoluta do PS, partido que é o mais beneficiado pelo atual sistema, eu invocava algumas razões para termos esperança numa alteração da lei.

Afinal, a história mostra-nos que, para alterar a lei eleitoral, basta haver vontade de colocar os interesses dos cidadãos acima do interesse dos partidos. Isso aconteceu em 2006, quando foram alteradas as leis eleitorais das regiões autónomas. Nesse ano, havia maiorias absolutas na Madeira (PSD), nos Açores (PS) e no país (PS) e, ainda assim, a lei mudou para tornar os parlamentos regionais mais plurais e representativos da vontade expressa pelos eleitores.

Porém, desta vez os impactos seriam sentidos na própria Assembleia da República e não em Assembleias Regionais bem longe de Lisboa, e como tal os partidos têm colocado os seus interesses acima dos interesses dos cidadãos.

Viu-se isso na rapidez com que o PS quis discutir a petição sobre este tema que levei à Assembleia da República. A 17 de março de 2023, os socialistas “mataram o assunto” dedicando-lhe menos de dez segundos pela voz do deputado Pedro Delgado Alves, que se limitou a dizer: “Saudar também os peticionários que nos trazem aqui a matéria da melhoria da proporcionalidade, que não tem necessariamente de passar por uma revisão do sistema; pode passar por pequenas melhorias”. Nada comentou sobre as soluções propostas. E nada avançou sobre as tais “pequenas melhorias”.

No fundo, os grandes partidos (PS e PSD) são muito beneficiados pelo atual sistema eleitoral. Em 17 eleições, o PS totalizou menos de 80 mil votos válidos não convertidos em mandatos. Uma média de 4.679 por eleição, o que não chega a 1% de todos os votos ignorados. O PSD tem quase o triplo, devido às suas dificuldades de implantação no Alentejo, mas juntos não representam nem 4% dos votos desperdiçados.

Entre os restantes partidos com assento parlamentar, só a Iniciativa Liberal, o Livre e o PAN têm abordado o assunto e tentado fazer algo de concreto.

O Chega é “o homem a quem parece que aconteceu não sei o quê” dos Gato Fedorento. Aquele que fala, fala, fala, mas ninguém o vê a fazer nada, exceto reclamar aos sete ventos quando tem uma câmara apontada a si. Exemplo: aquando da audição parlamentar da petição, que decorreu sem câmaras, o seu representante permaneceu calado do princípio ao fim.

Quanto ao PCP e ao BE, percebi ao longo dos anos que, sendo ativamente prejudicados, nem querem ouvir falar em mudar estas leis, aparentemente por receio de que PS e PSD se unam e tornem o sistema ainda mais desigual.

Acresce que todos os partidos com uma organização interna enraizada nos distritos atuais não se sentem confortáveis com a redução do número de círculos para metade, porque isso desagradaria aos seus “caciques”, “barões” e afins, pois metade deles perderia o protagonismo adveniente do cargo de “presidente da distrital”. Notei-o quando fui recebido em 2013 pelo grupo parlamentar do CDS-PP, onde senti, da parte de um deputado eleito longe do círculo de Lisboa, que havia um certo temor de que a redução do número de círculos desse maior poder às estruturas nacionais dos partidos.

Só para terminar, quero deixar uma outra forma de apresentar a dimensão do problema: em 2022, os votos válidos não convertidos em mandatos foram 730.011, o que corresponde a praticamente todos os eleitores que votaram de forma válida nos círculos de Setúbal, Évora, Beja e Faro. Não se pode continuar a ignorar uma parte tão significativa do eleitorado.