João Raposo Nunes, livreiro e alfarrabista mais antigo da cidade de Setúbal: A livraria UniVerso é “a minha casa” e “vou mantê-la por uma questão de sobrevivência”

João Raposo é uma pessoa fascinante pela sua simplicidade e conhecimento da cultura dos livros. Desde que abriu a UniVerso, junção de “unidade” com “verso”, por ser uma frase de um poema, esta passou a ser a sua casa. Tem aqui cerca de 40 mil livros, espalhados pelas mesas e chão. Um painel de azulejos da autoria de Miguel Amaral, numa alegoria aos descobrimentos com traços de modernidade, quadros do pintor João Mendão e fotografias de diversas personalidades.


Florindo Cardoso


Setúbal Mais- Como surgiu a ideia de criar a livraria UniVerso?
João Raposo
– Surgiu na sequência de deixar a empresa de táxis do meu pai, em Lisboa, na qual estive 10 anos. Frequentava alfarrabistas desde muito novo, sempre gostei das primeiras edições de livros, dos poetas mais consagrados como Teixeira de Pascoaes e outros. Sempre que parava o táxi, o pouco dinheiro que tinha era para comprar livros. Nessa altura, Lisboa tinha imensos alfarrabistas que foram fechando devido ao problema das rendas e do mercado. Sempre fui um comparador de livros compulsivo. Foi com os meus próprios livros, a minha biblioteca que abri aqui a livraria UniVerso. Foi quase como me arrancassem a alma, mas não havia outra forma de começar porque o dinheiro de comissão do táxi que o meu pai deu era muito pouca. Foi aqui nesta rua, mas no 1.º andar, no n.º 4, que aluguei um apartamento em fevereiro de 1989, um espaço com duas assoalhadas, do qual fiz uma livraria acolhedora, onde recebi por exemplo a atriz Eunice Muñoz, e nessa altura era apenas alfarrabista.

Setúbal Mais – Era um espaço que as pessoas foram conhecendo?
João Raposo
– Comecei a conhecer as pessoas em Setúbal. Já vivia na cidade há quatro ou cinco anos. Depois de ter a livraria quase um ano naquele espaço surgiu a hipótese de alugar esta casa de habitação, no n.º 13, um rés-de-chão, na mesma rua, que tinha apenas uma pia, fiz as obras e abri portas. Comecei a comprar livros em Lisboa e em Setúbal, e inicialmente ainda era alfarrabista, mas depois comecei a trabalhar com editoras. Nessa altura, abriu o centro comercial Jumbo e o mercado começou a cair imenso, de tal forma que tive de voltar à parte de alfarrabista. Um produto que apesar de já estar pago vende-se pouco.

Setúbal Mais – A sua paixão é mesmo a parte de alfarrabista?
João Raposo
– É. Gosto de encontrar raridades e proporcionar às pessoas preços acessíveis. Muitos livros já não está à venda e não podem ser encontrados noutros espaços. Também trabalho há muitos anos com as editoras independentes, um nicho de mercado que encontra nestas livrarias um espaço de venda. Livros muito bons.

Setúbal Mais – Ainda existe o interesse das pessoas de encontrar determinado tipo de livro?
João Raposo
– Sim, em menor escala. Antigamente surgiam os bibliógrafos, os colecionadores, pessoas que procuravam livros sobre Setúbal, mas foram desaparecendo com o tempo. Agora, aparecem mais professores.

Setúbal Mais – E as novas gerações não estão interessadas neste mercado?
João Raposo
– Não. Vão aparecendo pessoas novas, o que é muito bom, para as tais editoras independentes, e outros que procuram as novidades, bestsellers e livros isotéricos. Tenho clientes que procuram livros mais baratos porque não têm poder de compra.

Setúbal Mais – Tem uma vida fascinante de ter privado com grandes nomes da cultura do país como Agostinho da Silva?
João Raposo
. Sim. Esteve aqui comigo e fundou a Casa de Estudos. Ainda não era uma pessoa muito conhecida do grande público, isso só aconteceu depois das “Conversas Vadias”, na RTP. Conheci-o antes de abrir a livraria, na altura que tinha o táxi, em Lisboa. Costumo dizer que a minha grande sorte foi estar nos sítios certos à hora certa. Já conhecia a sua obra, das biografias que escrevia e foi uma pessoa que me marcou imenso e ajudou-me muito no começo da livraria. Tínhamos aqui a Casa de Estudos, que eram gerais gratuitos, onde as pessoas vinham para aqui à noite, numa troca de saberes, arte de sapateiro, filosofia, pintura, aulas de guitarra clássica. Entusiasmava as pessoas. Era uma pessoa simples e continuou sempre igual. Ainda não haviam os hippies e ele já era. Fundou universidades no Brasil e vivia com a sua própria horta e animais. Mantive sempre uma ligação com ele e era raro o fim-de-semana que não ia ao domingo visitá-lo e estar a ouvi-lo.
Luiz Pacheco, Mário Cesariny, Eunice Muñoz, muitos desses meus amigos vinham dos anos 70, porque frequentava os meios como a Brasileira do Chiado. Uma das minhas companheiras era prima da mulher de Herberto Helder e conheci-o e frequentava a nossa casa. Depois começo a escrever os primeiros poemas. Foi um mistério para mim. Não sei descrever como aconteceu. Sempre li desde pequeno. Publiquei 10 livros incluindo esta antologia poética, uma recolha organizada pelo Nuno Miguel Neves.

Setúbal Mais – Gostou desse trabalho?
João Raposo
– Sim. Não fui responsável pelo título nem pela seleção dos poemas. Dei liberdade a Nuno Miguel Neves para realizar a antologia. A frase é tirada de uma entrevista que dei ao Jornal de Letras feita por António Cabrita.

Setúbal Mais – Como conseguiu manter esta livraria durante três décadas?
João Raposo
– É um esforço enorme, prescindi de muita coisa. Viver o mais humilde possível e tenho a sorte de ter clientes fixos que compram livros e me ajudam. Tenho uma reforma de pouco mais de 300 euros, depois de trabalhar tantos anos. Tenho de continuar a trabalhar. Quero manter a livraria por uma questão de sobrevivência. Esta é a minha casa. Tenho aqui cerca de 40 mil livros, numa contagem visual feita por mim.

Fundador da livraria UniVerso em Setúbal
João Raposo Nunes, o amante dos livros



A livraria UniVerso, fundada em fevereiro de 1989, sita no número 13 da rua do Concelho, numa lateral do edifício dos Paços do Concelho de Setúbal, na baixa da cidade, é um mundo a descobrir pelos amantes dos livros e da arte. Um lugar, que embora pequeno na sua dimensão, é gigante na história cultural da cidade. Nasceu do sonho do livreiro e alfarrabista, João Carlos Raposo Nunes, o mais antigo em atividade na cidade, que também é poeta.


Distinguido com a Medalha da Cidade de Setúbal, na Classe Comércio, em 2020, e com o Diploma da LASA – Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, em 2019, João Raposo Carlos Nunes, é uma personalidade com um amor enorme pelos livros. A frase “Poeta, livreiro, impulsionador da leitura e do amor pelos livros, a sua obra e a UniVerso, serão para sempre património da cidade de Setúbal”, escrita no diploma da LASA, e exposto numa das paredes da livraria, juntamente com obras de arte do pintor João Mendão, dezenas de fotografias com personalidades como o filósofo Agostinho da Silva, o poeta Luiz Pacheco, a atriz Eunice Muñoz, entre tantos, define verdadeiramente o homem e a sua obra.

João Carlos Raposo Nunes nasceu em 1955, em Lisboa e durante décadas teve ainda a sorte de privar com grandes nomes da cultura portuguesa como o poeta Herberto Helder ou Mário Cesariny de Vasconcelos também poeta e pintor.

O livreiro e alfarrabista tem uma dezena de livros publicados. Lançou o seu primeiro livro de poemas “Todo o Voo (Que Termina) Neste Corpo”, em 1976. No ano seguinte, foi publicado “É Esta a Nossa Onda Gigante e “30 Haiku”. Seguiu-se “O Rolar da Pedra” (Ed. Pirilampo, 1980), “Flores Dispersas” (1986), “Enviado ao Abandono” (1988), Bulbul – “Cânticos Arrábidos (Plurijornal”, 1990), “Brancura” e “Livro de Haikus” (Licorne, 2016).

Em maio de 2022, é publicada a antologia de poesia “Saíamos em Bandos Disparando Brita, Prata, Fumos”, com organização, edição e introdução de Nuno Miguel Neves. “Tudo isto assume um sentido acrescido se tomarmos em consideração uma outra questão que se afigura como estruturante na obra de João Raposo e que encontra também reflexo no título da presente antologia que se conjuga no plural. Nada podia fazer mais sentido quando a poesia de Raposo Nunes prefigura claramente, como se pode ver, aquilo que poderíamos nomear como uma poética da amizade”, refere a publicação.

Em 1989, após uma larga temporada a conduzir um táxi em Lisboa, cumpriu o sonho de abrir uma livraria em Setúbal, a UniVerso, onde durante anos realizou tertúlias poéticas nas tardes de sábado. Assumira, no ano anterior, a direção da página “Arca do Verbo”, suplemento cultural semanal no jornal “O Setubalense”, que foi uma lufada de ar fresco na cultura da cidade sadina, durante vários anos.

Com paixão pelos livros, João Raposo e a UniVerso, uma livraria independente, continuam a resistir às dificuldades financeiras a que o pequeno comércio livreiro sofre, sobretudo devido à concorrência esmagadora das grandes superfícies comerciais. A livraria UniVerso, é o seu modo de vida, porque como salienta a parca reforma quase não dá para sobreviver.