Entrevistas

Trompetista Luís Martelo é o rosto do novo mural de VILE no Montijo: “É uma homenagem que muda a minha vida porque acaba por imortalizar o meu trabalho”

Luís Martelo, trompetista com carreira internacional, é o rosto do novo mural do VILE no bairro do Esteval, na cidade do Montijo, a convite do município no âmbito do Projeto (C)ASAS – Capacitar para Incluir, cujo objetivo é conscientizar e desmistificar estereótipos relacionados com as pessoas em situação de sem-abrigo. O músico não foi escolhido por acaso. Tem uma história de vida incrível, de superação, que serve de exemplo a todas as pessoas que se sintam vulneráveis, em qualquer contexto, na nossa sociedade. Luís Martelo, foi músico profissional, mas as circunstâncias da vida levaram-no para a rua, onde esteve três anos como sem abrigo. Conseguiu sair dessa situação, emigrar para Londres onde, após dois anos, conseguiu entrar numa orquestra como trompetista e desde então conquistou prémios internacionais.

Florindo Cardoso


Setúbal Mais – Qual foi a sua reação ao saber que o VILE iria pintar o seu rosto na fachada de um prédio no Montijo?
Luís Martelo
– Fiquei em choque. Inicialmente pensei que fosse uma brincadeira, mais uma daquelas mensagens que são uma treta, mas depois abri o perfil do VILE e percebi que era um artista certificado, com um trabalho espetacular. Falei com ele, e depois foi proposto a assinatura do contrato com a Câmara Municipal de Setúbal e aí teve a perceção de que era algo que iria acontecer. Curiosamente, isto aconteceu uma semana antes de ganhar o Globos Music Awards, nos Estados Unidos, ou seja, não foi em resultado de receber este prémio. As pessoas podem pensar que este projeto surgiu por causa de ter ganho o prémio, mas não foi. O VILE não sabia que eu iria ganhar o prémio. Foi uma surpresa para mim, sensacional, e ainda não acredito nem tenho bem a noção de ter a minha cara na fachada de um prédio com cinco andares.


Setúbal Mais – Gostou do trabalho do VILE?
Luís Martelo
– Sim. Sensacional. Tenho de dizer que há muitos artistas, do género dele, em Inglaterra, e os meios de comunicação social daqui não ficaram indiferentes à qualidade do seu trabalho. Parece uma fotografia. Fazer aquela imagem à escala tão grande é impressionante. Eu perguntei-lhe como era possível e o VILE respondeu, em tom de brincadeira, que se ele pegasse num trompete era um nabo e o mesmo comigo se pegasse num spray para pintar.
Setúbal Mais – Qual vai ser a sensação de ir ao Montijo e ver a fachada de um prédio com o seu retrato?
Luís Martelo – Estou muito ansioso por ver e abraçar o VILE e estou na expetativa porque nunca esperei ter um contributo destes. Quero frisar que o tributo não é à minha pessoa, mas à causa em si e estou muito orgulhoso de ter sido usado neste projeto, mas o ponto central são todos os que passam por dificuldades. Estou também curioso de ver a reação das pessoas à história em si. Convidei vários artistas para estarem presentes na inauguração, porque também ficaram sensibilizados, acompanharam-me desde o início e consideram que é sensacional aquilo que está a acontecer ali.

Setúbal Mais – O que significa para si esta homenagem?
Luís Martelo
– É muito gratificante porque não é um município com que tenha ligação, não é a muita terra por isso não é uma questão de favores. É situação genuína, sem qualquer tipo de interesse. Talvez seja a homenagem que me faça caminhar para a frente porque o incentivo é tão grande, e faz com que trabalhe de forma ainda mais árdua. Quero dar mais de mim, mas também ajudar pessoas mais vulneráveis. É uma homenagem que muda a minha vida, porque acaba por imortalizar o meu trabalho enquanto estou vivo, o que normalmente só acontece quando a pessoa morre.

Setúbal Mais – O seu retrato naquela fachada é mais abrangente do que o próprio Luís Martelo. É uma homenagem aqueles que tiveram problemas ao longo da vida e superaram?
Luís Martelo
– Sim, exatamente. Tantos casos que são anónimos. Conheço casos que tenho ajudado. Tenho falado com as pessoas, em palestras, e tentar contar a minha história e como se pode dar a volta. Mulheres que sofrem violência doméstica, pessoas que acabam na rua, há muitas situações em Portugal em que as pessoas dão a volta por cima, mas que não se sabe. Há muitos portugueses, sem cara, que estão neste mural. Espero que as pessoas se revejam, acreditam, e especialmente aqueles que ainda estão nesta situação de dificuldades. Procuro transmitir que há sempre um caminho melhor, sobretudo quando estamos a falar das ruas e das drogas. Às vezes, só é preciso encontrar aquela luzinha que nos faz mudar.

Setúbal Mais – A história da sua vida é incrível. Qual o fator, quando estava ma situação de sem abrigo, que o levou a seguir em frente?
Luís Martelo
– Vou ser sincero. Aquilo que aconteceu comigo foi numa noite crucial, em que ia morrendo, estava em hipotermia, e as pessoas podem não acreditar, mas sinto que tive um encontro com Deus e que havia qualquer coisa que não me estava a deixar morrer. Senti uma força que me fez levantar, ir à procura e mudar as coisas. Passei por quatro hipotermias, ia morrendo uma vez, em Coimbra, quando tentava apanhar polvo e fiquei preso nas rochas e aparece do nada um pescador a pé para me salvar. Foram um conjunto de situações que me alertou que não estava sozinho, havia uma força maior. Comecei a batalhar e ter uma vontade de recuperar tudo. Após três anos, sai da rua com quase 24 anos. Pensei que já não era possível recuperar a música, porque tinha deixado de aparecer.

Setúbal Mais – Qual a mensagem que deixa às pessoas em sofrimento, na mesma situação por que passou?
Luís Martelo
– Aquilo que gostaria que essas pessoas soubessem, e foi aquilo que mais me fez falta na altura, é que há sempre alguém que nos ama, que precisa de nós e não podemos ir abaixo. Num futuro, vão perceber que vão ficar mais fortes e podem ajudar outras pessoas, tal como estou a fazer. A tornar-nos melhor e ajudar os outros. Há sempre que alguém que precisa deles e quando faltarem a ausência de alguém, no aspeto físico, que olhem para o céu.


Setúbal Mais – A história da recuperação da carreira musical também foi fantástica porque aconteceu já em Londres?
Luís Martelo
– É preciso realçar que o trompete é um instrumento muito físico e são precisos anos de estudo para criar uma musculatura. Quando se para, e sabia disso quando tocava na Banda do Exército, sente-se muito. Parado há cinco anos, os três primeiros na rua e outros dois a trabalhar noutras áreas, em Londres, pensei que nunca mais aconteceria. A dentição estava mudada e os maiores problemas foram derivados dos anos que estive na rua ao apanhar frio e não ter higiene oral como seria normal. Em Londres, quando comecei a trabalhar num restaurante, no centro da cidade, comecei a lidar com uma realidade nova, as pessoas dos teatros, sobretudo os músicos, iam comer ali, e também havia muitos músicos de rua, e tive um clique. Estou num país diferente, onde ninguém me vai julgar porque ninguém me conhece e posso começar do zero, e onde há mais oportunidades. Comecei devagarinho, comprei o instrumento, e vi um anúncio de uma orquestra que estava a precisar de um trompetista principal e concorri. E num clique de sorte ou não, entrei. O problema foi quando comecei a tocar muitas horas na orquestra, a musculatura não aguentou e foi uma fase muito frustrante em que o corpo não estava a responder. Eu sabia tocar, o meu cérebro estava bem, mas o meu corpo não estava a aguentar. Por sorte, veio a pandemia do covid-19 e comecei a ter aulas diariamente com os melhores músicos do mundo, tudo online. Chorei imenso, houve alturas que quis desistir, mas quando faço o meu primeiro álbum de originais a solo “All of Me”, inscrevo-me no Global Music Wards e ganho uma medalha de prata. Senti que alguém estava a acreditar em mim, sendo uma grande motivação, e partir daí foi sempre a andar. Precisamos sempre que alguém acredite em nós e foi isso que aconteceu.


Setúbal Mais – Este ano voltou a ganhar um novo prémio?
Luís Martelo
– Sim, no dia 31 de março. Fiz uma versão, toda retrabalhada, do “Adeus Tristeza”, de Fernando Tordo, e não sendo cantada, a organização aceitou e ficaram maravilhados. E como o vídeo com a história da minha vida, com esta música, dá um sentido diferente à música, ficaram rendidos e ganhei a medalha como segundo melhor trompetista. Agora é manter a minha carreira, com os pés bem assentes na terra, e estou a trabalhar bastante. Estou a trabalhar o tema “Saudade”, de Cesária Évora. A minha ideia é promover a nossa cultura. Este álbum, com sete faixas, quatro são originais e três são covers como “Adeus Tristeza”, “Saudade” e o “Pica do 7”, de António Zambujo.

Trompetista Luís Martelo faz sucesso musical na Europa e EUA






Trompetista com obra premiada
Luís Martelo é um exemplo de superação e sucesso


Luís Martelo, o premiado compositor e trompetista português, é o rosto do mural pintado por Vile, na fachada de um prédio, no bairro do Esteval, no Montijo. O artista Vile propôs a ideia a Luís Martelo, que aceitou de imediato. Esta obra de arte pública faz parte de uma campanha promovida pelo Projeto (C)ASAS – Capacitar para Incluir, cujo objetivo é conscientizar e desmistificar estereótipos relacionados com as pessoas em situação de sem-abrigo.
Luís Martelo, que atualmente faz sucesso no mundo da música, passou por uma experiência de sem-abrigo que durou três anos antes de conquistar reconhecimento e os prémios. O mural foi criado como uma forma de transmitir esta história pessoal e também promover empatia e compreensão em relação àqueles que enfrentam a condição de sem-abrigo e de vulnerabilidade.
A iniciativa de criar este mural resultou de uma proposta apresentada pelo município do Montijo ao Programa Operacional Regional Lisboa 2020. O objetivo principal desse projeto é promover a inclusão social, combater a pobreza e a discriminação, com foco específico na inserção das pessoas em situação de sem-abrigo na sociedade.
Luís Martelo nasceu a 6 de julho de 1989 em Barcouço, concelho da Mealhada. Cresceu numa família humilde. Aos 7 anos integra a Banda filarmónica “Lyra Barcoucense 10 d’Agosto”, onde se iniciou na música. Aos 11 começa a tocar trompete, pelas mãos de Fernando Vidal, na altura primeiro sargento da Banda do Exército. Foi também pela sua mão que integrou a carreira militar na Banda sinfónica do Exército, em Queluz, junto com o seu mestre.
Mais tarde destacado para a Banda militar de Évora, e numa nova cidade, com uma liberdade repentina, Luís Martelo não consegue conciliar a vida militar com a vida noturna e as novas experiências.
De volta a casa, percebe que os pais se separaram e vê-se de repente sem chão. Ruma a Vila Nova de Milfontes (Odemira) onde vive três anos sem abrigo e teve de vender o seu trompete para comer.
Decide mudar-se para Londres, onde trabalhou nas obras, em fábricas e onde conhece a sua mulher. É nesta altura que concorre a uma orquestra e tudo muda. Muito esforço, dedicação e estudo permitem que Luís volte ao nível que sempre soube que tinha dentro.
Na pandemia do covid-19 conquistou o país por tocar nas ruas, em lares e para as pessoas à distância e decide gravar o seu primeiro disco com músicos como Mark Upton, que toca com Andrea Bocelli e Rod Stewart, o Rudney Machado, trompetista da Ivete Sangalo, Diogo Duque, trompetista dos HMB, e Salvador Sobral, Gonçalo Seco dos Kumpania Algazarra e muitos outros nomes mundiais de topo.
Com esse álbum vence duas medalhas de prata nos Global Music Awards nos Estados Unidos. No ano seguinte, volta a ganhar como artista revelação e melhor banda. Em 2023 volta a ganhar a medalha de prata para melhor instrumentista com uma versão de “Adeus Tristeza”, de Fernando Tordo.
É o trompete principal/solista da Taunton Concert Band, Lead Trumpet da Bertie’s Big Band e The New Groove, solista dos Skaravan Club, Solo Cornet da Phoenix Brass Band, e um dos trompetistas freelance mais requisitados para shows comerciais e sessões de estúdio. Apresentou-se a solo em diversos países como Suíça, Luxemburgo, Portugal, Inglaterra e ilha de Jersey, Espanha e País de Gales, Croácia e tem sido um sucesso emergente.
Luís Martelo é a prova de que o que nos acontece de mal na vida não nos define e que a condição de vulnerabilidade pode tornar-nos maiores.



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