João Reis Ribeiro
Em 1951, em Coimbra, foi publicado o primeiro número da revista “Sísifo”, que tinha como subtítulo “Fascículos de Poesia e de Crítica”, com um custo avulso de 7$50 (e valor da assinatura anual para Portugal de 20$00), em edição numerada de 700 exemplares. O seu director era Manuel Breda Simões (1922-2009), natural da Mealhada, mas com endereço em Coimbra à data da edição da revista. Em carta dirigida ao público a apresentar a publicação, Breda Simões anunciava não haver “periodicidade rigorosamente certa”, sendo intenção que fosse editada, “sempre que seja possível, todos os trinta dias”. O plano de edição não foi cumprido, pois foram publicados apenas quatro fascículos – o primeiro, em 1951; o segundo, um número duplo, também em 1951; o terceiro, em 1952. Já quanto ao conteúdo que os leitores poderiam esperar, propunha a carta a publicação de “poesias inéditas, portuguesas e estrangeiras, e ensaios críticos”, além de “referências críticas aos mais recentes livros e a outras publicações literárias”.
A primeira edição da revista, com capa de Alves Martins, cumpriu essa diversidade, tendo publicado poemas dos brasileiros Lêdo Ivo e Geir Campos, do espanhol Miguel Hernández e do português Aureliano Lima e um excerto de uma entrevista a Paul Éluard, saída no fluminense “Jornal de Letras” em Fevereiro desse ano. Sebastião da Gama leu este número da revista e terá provavelmente concordado com o texto de abertura do primeiro número, assinado pelo seu director, intitulado “A poesia, essa aventura”, em que algumas afirmações pareciam assentar naquilo que o poeta azeitonense pensava sobre a poesia, tais como: “A Poesia (na sua génese como no seu fruto – o poema) não se define, não se descreve, não se explica – vive-se, sente-se.” Breda Simões grafava “Poesia” com maiúscula, como Sebastião da Gama também costumava fazer e, quanto ao “sentir” o poema, havia consonância entre os dois autores, como veremos. Mais adiante, escrevia Breda Simões: “Não se é Poeta quando se quer e porque se quer – é-se Poeta quando se merece a estranha visita do sonho-criador.” Outra afinidade, esta do sonho, que Sebastião da Gama não desdenhou, por certo. A terminar esse texto inaugural, o director justificava o título da revista, com indubitável colagem ao símbolo e à mitologia: “Sísifo, esse heróico e persistente lutador, dá-nos bem a imagem da luta humana, telúrica, bela e verdadeira, do Poeta que sempre se esforça pela criação e sempre se renova, em sucessivos poemas e em sucessivas gerações, queimando o seu voto na ara de uma lírica aventura.” O lirismo foi o mais importante caminho que a geração de 1950 seguiu na poesia, uma expressão a que não foram alheias outras publicações em que Sebastião da Gama e alguns dos seus amigos poetas participaram e que pretendeu retomar a tradição literária portuguesa.
No fascículo duplo seguinte (que abrangeu os números 2 e 3 da revista), também de 1951, com capa e “hors-texte” de Júlio Resende, participaram os poetas portugueses António de Navarro, António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Joaquim Ferrer, Paulo António e Aureliano Lima, os espanhóis Joaquín de Entrambasaguas, Carmen Conde, Jose Hierro e Manuel Arce, e os brasileiros Paulo Mendes Campos, Domingos Carvalho da Silva e José Paulo Moreira da Fonseca. No plano do comentário sobre escrita e arte, houve a abordagem da obra de Miguel Hernández (por Carmen Conde), da pintura de Júlio Resende (por Eugénio de Andrade), ambos considerados por Daniel Pires “dos textos mais representativos que se publicaram” nas páginas da revista, e da poesia inglesa do pós-guerra (por Tomás Ribas).
O último fascículo, preenchido pelo quarto e último número da revista, com capa do pintor Mário Soares, datado de 1952, contém poemas dos portugueses Sebastião da Gama, Maria da Encarnação Baptista, Carlos Wallenstein, António Manuel Couto Viana, José Bento e Adriano Lourenço de Faria e dos espanhóis Pura Vázquez e Manuel Pinillos, além de apreciações bibliográficas assinadas por Breda Simões.
De Sebastião da Gama, publica este número da revista os poemas “Anunciação” e “Louvor da Poesia”. Quanto ao primeiro, terá sido esta a primeira vez que o poema veio a público, mas, ainda em 1952, em Junho, foi também divulgado no periódico eborense “Horizonte – Jornal de Artes e Letras”; no ano seguinte, integraria o primeiro título póstumo de Sebastião da Gama, “Pelo Sonho é que Vamos”; em 1958, Jorge de Sena incluiu-o na terceira série da sua antologia “Líricas Portuguesas”; mais recentemente, em 2003, Vasco Graça Moura antologiou-o na obra “366 poemas que falam de amor”, e, em 2005, António Lobo Xavier inseriu-o na obra “Os poemas da minha vida”; ao nível da produção fonográfica, este poema integrou o cd “Pelo sonho é que vamos”, editado em 2000, com textos de Sebastião da Gama ditos por Victor de Sousa, e foi incluído num cd do grupo setubalense e-Vox, musicado por Salvador Peres, editado em 2012. Relativamente ao segundo poema, já o mesmo tinha sido publicado na terceira obra de Sebastião da Gama, “Campo Aberto”, editado em 1951; contudo, este “Louvor da Poesia” viria a ganhar fortuna editorial quando foi reproduzido na revista “Távola Redonda” em 1962 (nº 13, Maio), e quando, em 2003, foi gravado em laje no Parque dos Poetas, em Oeiras.
Este quarto número de “Sísifo” reveste-se ainda de um significado maior para a poesia de Sebastião da Gama, uma vez que reproduz uma carta do poeta, datada de 22 de Setembro de 1951, respondendo a um questionário que visava ilustrar uma antologia da poesia portuguesa a ser publicada em Espanha: além de integrar pormenores biográficos (obras publicadas, colaborações em periódicos e nota biográfica), o questionário fazia a seguinte pergunta: “Que pensa da Poesia em geral, e da sua própria Poesia?” Sebastião da Gama foi claro nesta sua resposta, aqui se reencontrando com aquilo que Breda Simões tinha escrito no texto inaugural da revista já referido: “Minhas ideias acerca da poesia. Vide: ‘Louvor da Poesia’, in ‘Campo Aberto’. Será tudo? Olhe que a resposta não é para posar. É que só nos versos sei o que penso da Poesia.”
Sebastião da Gama faleceria dali a cinco meses, em Fevereiro de 1952. Não se conhecendo mais nenhuma resposta tão afirmativa e límpida do poeta azeitonense posterior a esta, bem podemos considerar que o seu poema “Louvor da Poesia” contém a sua arte poética e o seu sentir sobre o que seja o poema e o poeta, em jeito de testamento poético: “Dá-se aos que têm sede,/não exige pureza./Ah!, se fôssemos puros, p’ra melhor merecê-la…//Sabe a terra, a montanhas,/caules tenros, raízes,/e no entanto desce/da floresta dos mitos.//Água tão generosa/como a que a gente bebe,/fuja dela Narciso/e quem não tenha sede.” O poema, em três quadras, escrito em 7 de Fevereiro de 1950 (exactamente dois anos antes da partida do poeta), foi dedicado ao professor metodólogo que lhe orientou o estágio na Escola Veiga Beirão, Virgílio Couto.
Infelizmente, Sebastião da Gama não viu este número da revista “Sísifo”, pois faleceu quando a edição “estava em andamento”. Logo na primeira página deste número, é dito que “os Deuses permitiram ainda que a sua personalidade se definisse através de três livros de poemas, dos mais significativos da jovem Poesia portuguesa.” Elogio interessante, de facto, que deveria ser corroborado num próximo número da revista, que tencionava prestar “a Sebastião da Gama a homenagem que lhe é devida – e para a qual pedimos a colaboração especial de todos os colaboradores habituais, bem como de todos os Poetas e de todos os Críticos portugueses”. No entanto, esse número da “Sísifo” nunca chegaria a aparecer a público, pois, sem qualquer explicação, o número 4 encerraria o projecto. Paradoxalmente, este número final da revista abria e fechava a colaboração de Sebastião da Gama, dando voz ao seu entender sobre a poesia e, simultaneamente, fazendo o seu obituário…