Músicas: “Mãe”: a canção da nossa guerra

Um sem número de circunstâncias, de pessoas e de lugares une Setúbal a um imenso universo de acontecimentos e memórias. Hoje falamos de um poema de Bocage que, musicado por um dos integrantes de um agrupamento muito popular da música portuguesa do século transacto fez parte do respetivo reportório discográfico e de concertos.

Em 1965 a firma moçambicana “Importadora, Lda”, “dedicada exclusivamente ao serviço da música” e com sede na Cidade da Beira editou um “EP” (disco vinil de 7 polegadas e de 45 rotações por minuto, com apenas dois temas gravados em cada lado), com interpretações do Conjunto de Oliveira Muge. A matriz deste acetato, gravada no estúdio do RAC – Rádio do Aero Club da Beira e fabricado na África do Sul registava, assim, as composições inaugurais do agrupamento, constituído por quatro músicos da região de Ovar, Distrito de Aveiro (José Muge, piano; António Policarpo, viola solo e vocalista; António Oliveira Muge, bateria e por José Violante, viola baixo, natural de Cinfães do Douro e a viver em Vila Pery desde menino).

A indiscutível popularidade futura deste quarteto reunindo músicos, maioritariamente naturais de Ovar – e que, na sua formação inaugural (1958), tocavam em quinteto, de que faziam parte José Muge, ao piano; Joaquim Silva, vocalista e viola baixo; Alberto Capitão, no acordeão; António Biscaia, na bateria e António Policarpo, como vocalista e viola – ficaria a dever-se ao tema “Mãe”, gravado no ano de 1966 em Joanesburgo (África do Sul), nos estúdios locais da EMI, para a etiqueta “Parlophone”, com distribuição pela já referida firma moçambicana. Constituiria o seu segundo “EP”, denominado “On the Road With Oliveira Muge”. Algumas peripécias editoriais depois, nas sucessivas edições que conheceu, o disco titular-se-ia simplesmente: “Mãe”.

 

Twist Bocage: A História de uma canção.

A melodia “Mãe” que emprestaria um novo título àquele segundo disco foi um pioneiro sucesso musical para a actividade discográfica comercial da década de 60, no Portugal de então. Viria a ser, inclusivamente considerada como uma das grandes “canções da guerra” colonial portuguesa, pela amplitude e significado entre sucessivos contingentes de militares, longamente apartados dos seus entes queridos.

Os versos de “A Mãe”, sublinhados por uma melopeia envolvente, como que mitigaram, durante longos anos do século passado, a atormentada ausência e a dolorosa saudade dos milhares de soldados portugueses destacados para mortíferos conflitos, nas antigas e distantes colónias portuguesas de África: “Mãe, tu estás tão longe de mim / Mãe, sinto que estás a chorar / Não chores a minha ausência / Eu hei-de voltar / Não chores e pensa agora / Que o tempo passa depressa / Pede a Deus que te tire esse tormento / Que te abrande o sofrimento / Desse teu formoso rosto. / Mamãe, não chores / Eu volto, Mãe.”

Uma primeira curiosidade ligando este agrupamento a Setúbal encontra-se num facto de carácter e importância demográfica local pois, como sabemos, muitas famílias ovarinas estão na origem do enraizamento e no desenvolvimento da grande e muito laboriosa comunidade setubalense que veio a estabelecer-se, maioritariamente, no bairro das Fontainhas, junto à Avenida Luísa Todi, devido à implantação da indústria conserveira ocorrida a partir da segunda metade do séculos XIX precisamente e, sobretudo, na zona a nascente da Cidade.

O compositor e cantor António Policarpo de Oliveira Costa havia chegado a Vila Pery (actual Chimoio, Moçambique), no ano de 1962, na companhia de José Muge, a bordo do Paquete Infante D. Henrique, uma das embarcações que viria a transportar as tropas que, oriundas do Continente iriam prestar serviço nas antigas “províncias ultramarinas”. O primeiro acto de rebelião da FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique contra as forças militares portuguesas no território iniciar-se-iam a 24 de Setembro de 1964.

Logo no primeiro trabalho discográfico do Conjunto de Oliveira Muge (datado de 1965 ou seja, um ano antes do grande sucesso “Mãe”, de que falámos, sai gravado “Twist Bocage”, também a primeira composição original desta muito conhecida formação. Emparceiram-na, neste disco, mais três composições: “And the Heavens Cried”; “Et Pourtant” e “Sabato Sera”.

 

Escândalo cantar grandes poetas

 

O tema “Twist Bocage” ali incluído dá nome ao seguinte epigrama, de acordo com Teófilo Braga (Obras de Bocage. Introdução, Lello e Irmão Editores, Porto, 1968), atribuível a Elmano Sadino. Os versos bocagianos escolhidos pelo Conjunto de Oliveira Muge fazem parte de uma larga colectânea de epigramas em que o nosso Poeta ironiza acerca de questões médicas e farmacêuticas, dele contemporâneas. No caso do tema escolhido para o presente disco, Bocage refere-se, assim, à “milagrosa cura” de uma donzela: “Lavrou chibante receita / Um doutor com todo o esmero; / Era para certa moça, / Que ficou sã como um pero. / “Tão cedo! É milagre!” (assenta / A mãe, que de gosto chora). / “Minha mãe, não é milagre, / Deitei o remédio fora”.

Como recorda Helena Costa Toipa, no artigo “Os Clássicos nos Epigramas Portugueses Setecentistas” publicado em Máthesis [Revista do Departamento de Letras da Universidade Católica Portuguesa – Viseu], N.º 15, 2006, pp. 109-126: “Bocage é um dos nossos mais inspirados epigramistas e um dos que, com mais graça, pega nos temas da sátira, a maior parte deles comuns aos temas de Marcial [Marco Valério Marcial, poeta latino, 40 d.C.]. Um desses temas é o ataque a grupos profissionais determinados, sendo o mais visado o dos médicos. Mas se Marcial escrevera alguns epigramas atacando os médicos, Bocage dirige-lhes uma quantidade considerável, predominando no conjunto dos seus epigramas conhecidos”.

Derradeira curiosidade: Era quase crime de lesa Poesia cantar os grandes poetas portugueses. Foi justamente naquele ano de 1965 que em Portugal estalou uma intensa e viva polémica, quando, pela primeira vez, Amália Rodrigues ousou levar na sua voz, para a música de fado, poemas de Camões (“Dura Memória”; “Erros Meus”…). Escritores como José Cardoso Pires ou José Gomes Ferreira manifestaram-se publica e ruidosamente contra. Foi, então, um verdadeiro escândalo nacional aventurar-se alguém a levar a obra dos nossos grandes poetas para a Música?…

Horácio Manuel Pena