Bocage, o Sábio

Na Biblioteca Pública Municipal de Setúbal está patente desde inícios de Julho corrente, uma exposição que recorda, sob uma perspetiva menos divulgada, a atenção do poeta setubalense Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), concedida às actividades científicas que iam tendo lugar no diário da sua contemporaneidade.

Na então Real Praça do Comércio (modernamente mais conhecida pela designação de Terreiro do Paço), o italiano Vicente Lunardi (1759-1806) faz subir no ar, a 24 de Agosto de 1794 um “globo aerostático e os demais formidáveis aparatos”, resultantes da aturada pesquisa científica a que vinha procedendo.

Proeza de monta na pacata Lisboa de então, haveria de maravilhar o nosso Bocage que, sobre o feito compõe um considerável conjunto de exaltadas e brilhantes oitavas, aliás, na maior parte reproduzidas na mencionada exposição.

Para além da magnificação das ciências envolvidas, o poema é um audacioso réprobo da intolerável ignorância vigorante no mesquinho Portugal de então, que Bocage com tanta tenacidade, sempre combateria.

Difícil nos é, de entre aquele elogio bocagiano magnífico, salientar considerações poéticas, pois tão preciosas todas nos parecem.

No entanto, seguindo a ordem da composição, não resistimos a destacar os seguintes versos que, para além da circunstância que os motiva, não deixa de revelar-nos (como se tal ainda fosse necessário), a incomparável inspiração poética de Elmano Sadino:

“Assoma aos ares, neste alegre dia, / Raro prodígio de arte e de ousadia.” (…).

“Contemplar em silêncio a audácia humana (…) “Ver brilhar, ó Ciência, o teu tesouro.” (…).

“Em quanto grito, o aéreo Navegante / Seu rumo segue em plácido descanso, / Munido de ciência, e de constância, Surdo à voz do terror e da ignorância” (…).

“Gamas, Colombos, Magalhães famosos. / Eternos no áureo templo da memória, / Sirtes domando os mares espantosos. / De assombros mil e mil dourais a História; / Mas ir dar leis aos ares espaçosos / É triunfo maior, e até mais glória.” (…).

“Lá na ditosa e lúcida Morada, / defesa aos vícios, de que abunda a Terra / Guardai da Glória no imortal Tesoiro / o nome de Lunardi em letras de oiro” (…).

“Domaste a mente incrédula e teimosa: / Das fadigas, que exige árdua Ciência, / Em vivas perenais o prémio goza, / E admira em teu louvor estanho e novo / Unida à voz do Sábio a voz do povo“ (…). “Longe, vãs prevenções do Homem grosseiro, / O Sábio é Cidadão do Mundo inteiro“.

Convençamo-nos todos que quanto mais pudermos demorar-nos na leitura da obra poética de Bocage melhor seremos capazes de o admirar, mesmo de o amar, até pela grandeza do seu pensamento, da sua atitude perante o mundo, na afectação das gentes que o rodeavam, longe da ideia vulgar (em tão grande medida equivocada) que dele fazemos, como principalmente ocupado nas simplórias tertúlias de taverna em que quer surpreendê-lo o anedotário brejeiro de uns quantos, não clarificados.

Esta exposição insere-se e complementa, assim, o grande propósito das comemorações de Bocage que, a propósito dos duzentos e cinquenta anos do nascimento, a Câmara Municipal de Setúbal vem conduzindo e que é o de resgatar a memória de Bocage, elevando-o da condição, simplista, inverdadeira, a que o remeteram, de mísero boémio só, em prejuízo do notável e esclarecido poeta e do homem implicado que de facto foi.

Com uma muito conseguida concepção gráfica, sóbria, funcional, legível, como afinal importa, vimos no espaço condigno do Auditório da Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, uma exposição muito atraente, com um aliciante pendor pedagógico, sobretudo acentuado pelo bem desenvolvido trabalho de pesquisa elaborado por alunos da Disciplina Biologia e Geologia, da Escola Secundária Bocage, para o efeito orientados pela Prof.ª Rosa Duarte, responsável pela Biblioteca daquele estabelecimento de ensino de Setúbal.

Aqueles alunos, mediante seu louvável trabalho oferecem-nos um significativo panorama de algumas das grandes pesquisas e conquistas científicas que entre 1701 e 1800 aconteceram naquele período, fazendo assim justiça ao “século das luzes”, como ficou conhecido o século XVIII, o tempo em que Bocage viveu e durante o qual foi, como permanece, um cintilante astro no iluminado céu, revelador, que então se abriu sobre o tempo e o mundo passados decidindo, afinal, tanto sobre as muito agitadas perspectivas do nosso presente.

Imperdível!

Horácio Manuel Pena