A Hora da Bíblia?

Num tempo em que o denominado “livro dos livros” está, mais que nunca sujeito a múltiplas controvérsias de variado sentido, desde as inúmeras novíssimas traduções populares ou eruditas, até à constante crítica interpretativa dos respetivos textos, por vezes com notória preocupação exegética e pastoral, eis que surge uma nova versão da Bíblia… agora em verso. Manuel Monteiro da Costa empreendeu a grandiosa e vática tarefa que, a partir de agora, começa a disponibilizar aos seus leitores.

Apresentado a 19 deste mês, em S. Brás de Samouco (terra a que o poeta se encontra particularmente ligado) a 31, no Montijo e, a 9 de abril em Marco de Canaveses e, pelo meio, amanhã, 24 de março, será a vez dos leitores de Setúbal poderem conhecer esta obra, numa sessão que terá lugar no Salão da Cúria Diocesana, à Rua Fran Paxeco, na Baixa da Cidade.

 

É a Bíblia Poesia?

“A Bíblia em verso”, que será completamente publicada em seis volumes pela Editora Verso de Kapa e prefaciada pelo teólogo e biblista Frei Fernando Ventura que a certo passo afirma que: “com esta magnífica coleção, o autor coloca a simplicidade das coisas grandiosas ao jeito de serem entendidas”, resulta de um intenso trabalho de cerca de uma década.

Temos, então, já disponíveis os cinco primeiros livros bíblicos formadores do denominado “Pentateuco” (ou cinco rolos) e que constituem, também, o primeiro volume desta “bíblia poética” o que, em certos aspetos e no que respeita, sobretudo a alguns dos próximos livros que a comporão, não deixará de sublinhar muito da própria poesia original que já em si contêm. Pensemos, sobretudo, nos próprios Salmos, no Eclesiastes, no Cântico dos Cânticos ou no Livro de Ben Sira ou de “Sirácide” (este último, até recentemente denominado “Eclesiático”)… ou o Benedictus, o Magnificat e o Cântico de Simeão, dos primeiros dois capítulos do Evangelho de Lucas.

Outras experiências algo semelhantes à presente publicação foram, entretanto, conseguidas. Lembremos, por exemplo, a da Sociedade Bíblica de Portugal, cuja tradução utilizada compreende menos livros (apenas 66, constituindo o “cânon curto” como é tradição, em edições lidas pela comunidade cristã da Reforma, contra os 73 considerados no Cânon do Antigo Testamento adotado na Tradução da Bíblia Grega, dita “dos Setenta” e preferida pelos católicos) que editou em 2004 uma adaptação, em verso, para crianças. A nova “leitura” de dinâmica poética que agora se publica, rimada e ritmada da Bíblia dirige-se pois, a outra faixa etária de público.

 

Do versículo ao verso

O gigantismo óbvio desta empresa cativa a nossa atenção e admiração ainda que, relativamente àquele conjunto de livros, tidos como inspirados para judeus (Antigo Testamento) e para cristãos (Antigo e Novo Testamentos), alguns de nós cultivemos aquiescência ou, pelo contrário, rejeição ou indiferença. Atitudes, estas últimas, absolutamente compreensíveis perante um compromisso de “agenda”, em aparente crescendo, eivado de fundamentalismo bíblico fixista e seletivo que, por vezes exorbitando do texto (da cultura e das aculturações, do contexto social, político e religioso, bem como da ancestral tradição em que aquele longamente se formou) o submete a leituras sentenciais pontualmente convenientes, ora para “condenar”; ora para “absolver”. O que, afinal, com desabusada frequência e numa perspetiva meramente humana, presume ser de “punir” ou quanto supõe ser de “inocentar”… em fidelidades cegas a teodiceias ou a teocracias intolerantes.

Mas, enfim, o presente trabalho retoma, de algum modo, uma proposição razoável (e inegável) que todos podemos atribuir à Bíblia (crentes ou indiferentes): a de que, mesmo abstraindo do outorgado carácter de sacralidade, de inspiração divina, trata-se de um vetusto monumento literário de incomensurável importância, representando variados géneros e multímodos estilos onde precisamente pontua, com maravilhosa persistência, a Poesia.

Não será a Bíblia, finalmente, um longo e comovente poema? Pleno de drama intenso, da mais exaltante e promitente Alegria?… Isto, só, é já em si bastante! Porque a Poesia é Vida. E vida em abundância [Evangelho de João, 10:10].

Importa referir a terminar que, curiosamente, o nosso Autor, nascido em Soalhães, Marco de Canaveses foi formador, durante cerca de dezoito anos, de Eletrotecnia e Eletrónica, no Instituto de Formação Profissional, em Setúbal e na Academia de formação Técnica ATEC, em Palmela.

Prova de que a Poesia cruza-se sempre em cada um dos caminhos das nossas vidas. Não raro interpelando, rasgando a serenidade, como um relâmpago na noite temerosa, iluminando um momento incompreendido em nós desde, até, o mais interior de uma ou de outra simples e solitária página da Bíblia. Como aqui!

 

Horácio Manuel Pena